terça-feira, 19 de julho de 2011

«Em nome da mãe» de Armando Silva Carvalho


Armando da Silva Carvalho nasceu em Olho Marinho, Óbidos, em 1938. Licenciou-se em Direito, foi advogado, jornalista, professor, tradutor e publicitário, mas acabou por se afirmar como escritor e poeta.
A sua escrita é marcada por um tom mordaz e satírico, que faz dela uma leitura bastante agradável e divertida, com tiradas de grande actualidade. 
Como esta, por exemplo:

Aos trinta a gente amadurece, aos trinta e cinco chega-se a velhinho e não encontra lugar na plateia da vida, e muito menos no palco. Olhai, vós que passais, viris, ao sol nascente, cuidai dos vossos anos, tratai dos vossos sonhos, que o tempo não engana, sois vós que insistis em ser enganados. E de repente é tarde.

                            in «Em nome da mãe», de Armando S. Carvalho



 

domingo, 17 de julho de 2011

«Regresso do Gerês» de Isabel del Toro Gomes




Regressámos do Gerês
Neste domingo ventoso
Lá ficaram os trilhos
Das verdes montanhas
Que calcorreámos sem cessar
Lá ficaram os bancos de pedra
As fontes as cascatas as lagoas translúcidas
Que refrescaram os nossos corpos
E saciaram a nossa sede




Lá ficou o sol que se vislumbra na manhã
Através dos verdes ramos emaranhados
Lá ficaram a lua e as estrelas
Iluminando o céu na noite sem luz
Lá ficaram as hortenses azuis
As lilazes flores do campo
Chorosas nos seus cachos





Lá ficaram os pinheiros bravos
Os eucaliptos brancos os vidoeiros
Os pastores solitários
E os seus rebanhos na vezeira
Lá ficaram as cabras montanhesas
A saltar de rocha em rocha
Com os lobos a espreitá-las

Lá ficaram o nosso rio Gerês
O pobre cavalo branco
Sozinho no meio do mato
As nossas borboletas amarelas
E de todas as cores esvoaçando sem parar
O nosso lagarto os nossos pássaros trepadores
O nosso canto debaixo do grande carvalho



Regressámos do Gerês
Neste domingo de vento
Mas não lhe dissemos adeus
Pois lá ficou um pouco de nós
Lá continua o nosso pensamento.

domingo, 3 de julho de 2011

«Se morrer é isto» de Isabel del Toro Gomes

Se morrer é isto

Desaparecer num segundo apenas

Desistir de tudo mesmo

Deixar a luta  labuta

Ir embora simplesmente

Desligar a máquina

Então adeus até nunca

Nem um até breve

À bientôt  je vous aime

Se morrer é isto

Então deve ser fácil demais


Se morrer é isto

Não sentir mais nada

Amor paixão dor

Ficar inerte e mais nada

Não acenar a mais ninguém

Olá viva tudo bem

Se morrer é isto

Deixar de cantar dançar pular

De fazer asneiras de falhar

De se aborrecer de ler  escrever

Então não tenho a certeza

Se quero este morrer.




sexta-feira, 1 de julho de 2011

«Soneto a J. Félix dos Santos» de Antero de Quental




Busto de Antero de Quental em Santa Cruz, Torres Vedras


Oliveira Martins, grande amigo de Antero de Quental e que sempre o acompanhou até ao fim, indo visitá-lo a Ponta Delgada, onde este se retirara desistindo de todos os compromissos assumidos, e onde  acaba por se suicidar em 1891, diz de Antero poeta que nunca viu natureza mais complexamente bem dotada, que dava alma a uma família inteira. É um poeta que sente, mas é um raciocínio que pensa. Enfim, sabe chorar, como todo o homem digno da humanidade.
Dos muitos sonetos que Antero escreveu, tomo nota deste que questiona, de forma aparentemente simples, a complexidade do Tempo:

A J. Félix dos Santos


Sempre o futuro, sempre! e o presente
Nunca! Que seja esta hora em que se existe
De incerteza e de dor sempre a mais triste,
E só farte o desejo um bem ausente!



 Ai! que importa o futuro, se inclemente
Essa hora, em que a esperança nos consiste,
Chega...é presente...e só à dor assiste?...
Assim, qual é a esperança que não mente?


Desventura ou delírio?... O que procuro,
Se me foge, é miragem enganosa,
Se me espera, pior, espectro impuro...

Assim a vida passa vagarosa:
O presente, a aspirar sempre ao futuro:
O futuro, uma sombra mentirosa.

                                                                                       Antero de Quental

  1.                    Estátua de Antero de Quental - escultor Salvador Barata-Feyo (1902-1990), no Jardim da Estrela
 

domingo, 26 de junho de 2011

«O primeiro camarada que ficou no caminho» de Manuel da Fonseca


Em 2011 comemora-se o centenário do nascimento do grande escritor neo-realista Alves Redol, mas também o de Manuel da Fonseca, que não lhe fica atrás na arte de contar histórias.
Aldeia Nova, livro de contos publicado em 1942, é disso um exemplo acabado.

Ah, Manuel da Fonseca, que falta me faz
essa tua arte de contar as coisas sérias da vida.
e também as risonhas, usando o compasso certo
com que o Zé Jacinto, teimoso,
ensaiava a heróica marcha Almadanim!
                                                                Alexandre Cabral

É nesse livro de contos fascinantes que se encontra o conto O Primeiro Camarada Que Ficou No Caminho, que relata na primeira pessoa a dor lancinante duma criança que assiste de longe à doença e morte do pequeno irmão, pois o enviaram para casa dos avós, para o afastarem do perigo e da dor. Pelo contrário, o seu sofrimento é ainda maior, por não poder ver a sua mãe, nem o irmãozito nem a sua casa.
Esta é uma história verdadeira, pois essa criança é o próprio Manuel da Fonseca e a criança que vem a morrer o seu irmão mais novo três anos, José. Mais uma vez a autobiografia a invadir a escrita.


Sentia-me só no mundo.
Em frente, a casa silenciosa e fechada para os meus olhos.
O avô partia de manhã para o campo e só voltava à noite. Minha avó andava atarefada na lida da casa, ralhando com as moças. O Toino andava no jogo da bola e nem minha mãe, nem minha mãe sequer aparecia à janela.
O Estróina já estaria bêbado?

É difícil para nós assistirmos insensíveis a esta realidade tão cruel para duas crianças tão pequenas, uma que morre outra que sobrevive vendo o irmão morrer, impotente. Mas esta era uma realidade quase banal da vida quotidiana dos nossos avós e pais: nos fins do século dezanove e princípios do século vinte, muita gente morria na infância ou ainda jovens, por doenças que agora têm felizmente cura e são mesmo banais.
Muita coisa tem mudado para melhor, a humanidade tem dado muitos passos em frente e alguns para trás, mas sempre se foi evoluindo. Tenhamos esperança então que assim continuem os homens dos nossos tempos, difíceis mas não perdidos ainda.
Enquanto há vida há esperança!

quinta-feira, 23 de junho de 2011

«Meditação..» de Ruy Cinatti



Ruy Cinatti nasceu em Londres em 1915 e é um dos grandes poetas do séc. XX, segundo Jorge de Sena.
Merece, assim, um lugar neste blogue que gosta de recordar poetas esquecidos.
Veio em criança para Lisboa, tendo viajado muito pelo mundo inteiro, nomeadamente o Oriente. Viveu alguns anos em Timor. Foi uma personalidade originalíssima, em que se cruzam as diversas vivências e ambiências de que foi protagonista.
Escolhi este poema, com a voz e a melancolia do mar :


Meditação

Tudo imaterial na praia rasa
Cheia de sol, ao fim da tarde,
Proa ao vento quebrada,
A vaga, entre rochedos, se ilumina.


É tudo imaterial, tudo neblina
Ténue que aos poucos arde,
Ao fim da tarde se desfaz, flutua,
E voo de ave desliza
Ao longe linha pura
Tudo imaterial na praia rasa.

Aqui ninguém me vê: amo a ternura.
 
                          Ruy Cinatti, in O Livro do Nómada Meu Amigo



quinta-feira, 16 de junho de 2011

«Primaveras Românticas - Versos dos vinte anos» de Antero de Quental



Antero de Quental, um dos maiores poetas portugueses, introdutor do socialismo em Portugal e figura complexa das nossas letras, também escreveu poemas de juventude, inocentes, cheios de frescura e de idealismo.
Eis o motivo da sua publicação, pelas próprias palavras de Antero:

Ter sido moço é ter sido ignorante, mas inocente.
..................................................................................................
Fomos todos assim, naquela encantada e quase fantástica Coimbra de há dez anos. Um sopro romântico, cálido mas balsâmico, fazia rebentar tumultuariamente as nossas primaveras em borbotões de flores................................................................

                                                         (1872)
Muitos desconhecem estes versos dos vinte anos de Antero, também eu fiquei surpreendida com a sua jovialidade e pureza. Dos muitos que me encantaram, escolhi alguns que penso representativos desta fase de Antero, muito jovem ainda:


Eu sou a concha das praias
Qua anda batida da onda
E, de vaga em outra vaga,
Não tem aonde se esconda.
Mas se um menino, da areia
A colher e a for guardar
No seio...ali adormece
E é ali seu descansar.
Pois sou a concha da praia
Que anda batida da onda...
Sê tu esse seio infante,
Aonde a triste se esconda.
............................................                                             

                                     in Pepa (1863)



Nós somos loucos, não somos?
D' esta louca poesia,
D' esta riqueza dos pobres
Que se chama fantasia!
..........................................................................
                                                                  
                                                          in Idílio Sonhado (1864)



 
À Guitarra

Três cordas tem a guitarra,
Uma d' ouro, outra de prata...
À terceira, que é de ferro,
Todos lhe chamam ingrata.

Ninguém faça ramalhetes
Com flores que hão de murchar...
Ninguém tenha cordas de ouro,
Se as não quer ver estalar!
....................................................
Das três cordas da guitarra
Uma chora, outra dá ais...
Bastou-me um amor na vida,
Um só amor e não mais!

                                       in Cantigas (1864)



                         Memorial a Antero de Quental, no Jardim do Príncipe Real, em Lisboa

terça-feira, 14 de junho de 2011

«Moinhos da aldeia da Pena» de Isabel del Toro Gomes

Moinhos da aldeia da Pena
Onde estão vossos moleiros?
De tanto pão que fizeram
Só resta a majestade
Tais gigantes com asas
Que não podem mais voar...



O vento continua a soprar
No alto desses montes
Mas os moinhos da aldeia da Pena
Lá continuam serenos imóveis
Lançando olhares nostálgicos
Por esses caminhos vermelhos de papoilas
Por onde dantes chegavam e partiam
Os burricos carregados de sacas

Agora
Só nós os visitamos
Na esperança de os encontrar
Com as mós a rodar
E as velas a esvoaçar
Ao vento.

terça-feira, 7 de junho de 2011

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Para os que gostam de gatos



O gato possui beleza sem vaidade,
força sem insolência,
coragem sem ferocidade,
todas as virtudes do homem
sem os seus vícios.

                                          Lorde Byron (1788-1824)


O gato é o único animal
que conseguiu
domesticar o homem.


                                             Marcel Mauss (1873-1950)

domingo, 5 de junho de 2011

Victor Hugo - Séc. XIX



Não são as máquinas
Que arrastam o mundo,
Mas sim as ideias.


                                                   Victor Hugo

sexta-feira, 3 de junho de 2011

«Avieiros» de Alves Redol

Alves Redol nasceu em Vila Franca de Xira em 1911 e morreu em Lisboa em 1969. Empenhado na luta de resistência contra o regime salazarista, fez da sua escrita uma forma de intervenção social e de luta.
O grande contador de histórias do povo, dá-nos nesta obra com admirável fidelidade e plasticidade a dolorosa faina dos pescadores do sável do rio Tejo. De tal forma, que o seu rosto se assemelha ao rosto dos personagens da sua obra, de todos os Zés,de todos os Tóinos, de todas as suas personagens gigantescas em capacidade de sofrimento e de sobrevivência.
Alves Redol foi mesmo viver para uma das mais conhecidas aldeias avieiras, a Palhota, para melhor conhecer a vida sofrida destes homens, mulheres e crianças, denominados pejorativamente «os ciganos do rio», como se não fossem gente. Ou «vagabundos do rio», hoje talvez uma designação envolvida em algum romantismo e lirismo, ausente naquela época. 

Foi nesta casa que Alves Redol permaneceu e escreveu o seu livro «Avieiros». Este não é o Malagueiro, o cão do pequeno e malogrado João da Vala, cujo nascimento marca o início da obra e que deixa nela uma marca indelével, pois nasce e morre no saveiro que era a sua casa, deixando um enorme vazio na narrativa.







Nestas imagens tiradas noutra localidade avieira, Escaropim, também citada na obra, podem ver-se como eram aproximadamente as barracas dos avieiros, feitas de zinco e de palha, bem como os saveiros que eram as suas habitações e locais de trabalho, enquanto não arranjavam madeiras e outros materiais.
Muitas outras localidades são cenários desta obra, ou apenas citadas, como Muge, Valada, etc, hoje bem diferentes e com bons equipamentos ribeirinhos, como o belo Parque Natural de Valada.





-Assim arrenegado ficas mais velho, Tóino!
-Devia ficar velho depressa e morrer depressa. Que anda a gente aqui a fazer? Não me dizes?!...
-À espera de melhores dias.
Uma semana depois lançam a primeira rede à água. Uma semana depois sabem todos que desapareceram onze barracas e que a palha das outras começa a apodrecer.

À espera de melhores dias, é o destino de toda a humanidade, afinal, ontem como hoje! A nossa condição humana!



quarta-feira, 1 de junho de 2011

«Sonho de criança» de Isabel del Toro Gomes

Hoje, Dia da Criança, um poema para aquelas que não podem ter infância!
    


Sonho de criança
               

Sonho...

Uma criança que brinca

Uma bola no ar

Um papagaio a voar

Um barco à vela ao fundo

Uma concha na areia

Um pensamento profundo

Que leva uma sereia

A um palácio

No fundo do mar.


terça-feira, 31 de maio de 2011

Sabedoria Ameríndia



A Oração não chega para o Guerreiro Interior.
Precisa de transformar as palavras em montanha, em lago,
Em rio ou em cavalos selvagens.
Tal como ele, tens de aprender a criar a realidade
A partir dos teus desejos.
Só assim as palavras «felicidade»,
Quietude, paz de espírito
Se transformarão em paisagens da alma.
E tu poderás habitar realmente
Um Mundo Novo.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Saber ou imaginação?

A imaginação
É mais importante
Do que o saber.


                                                                     Einstein (1879-1955)

O saber e a imaginação têm de ser complementares, são os dois importantes e vitais. Ou só restarão ruínas!

terça-feira, 24 de maio de 2011

«No Boquilobo» de Isabel del Toro Gomes


No Boquilobo
As águas invadiram as terras
As garças chegaram de longe
O rio espraiou-se à vontade
Como se tudo fosse dele agora
Patos grasnam voam reproduzem-se
Peixes percorrem felizes
Todo o lago manso dum azul translúcido
E por baixo de tudo isso
Bem lá no fundo lamacento
Continuam a viver
As raízes das árvores
E a lutar
As almas dos homens.

domingo, 22 de maio de 2011

«Húmus» de Raul Brandão



Raul Brandão nasceu em 1867, na Foz do Douro, e morreu em 1930, em Lisboa. É um dos poucos autores iniciados na corrente simbolista que não se dedicou à poesia, o que é realmente estranho.
«Húmus» foi escrito em 1917 e confirmou o escritor como modernizador da ficção portuguesa. Neste romance que mais parece um diário, o autor  reflete de forma atormentada os grandes temas da alma humana: a culpa, o bem e o mal, a angústia existencial, a vida e a morte, Deus.
Embora estes sejam temas importantíssimos para o leitor em geral, que levam à reflexão e ao enriquecimento pessoal e humano, este não é um dos livros que mais me agradaram, pelo seu tom demasiado pessimista e lúgrube mesmo.
No entanto, quero salientar algumas linhas, de grande beleza e profundidade:

Em lugar do uso de palavras fazia isto melhor com o emprego de dois tons - cinzento e oiro: uma nódoa que se entranha noutra nódoa. O sonho turva a vila como a primavera toca neste charco só lodo e azul: tinge-o e revolve-o.
.............................................................................................................
O hábito tem profundidades de légua.
A princípio olham-se desconfiados, com medo uns dos outros. Sem dúvida gostam de viver mais um século, mais dois séculos, mas não sabem ainda que emprego hão-de dar à existência. Não se lhes dava mesmo de morrer com tanto que continuassem a jogar o gamão no infinito. O que lhes custa mais a perder não é a vida, são os hábitos.

                                                                      in «Húmus»




terça-feira, 17 de maio de 2011

Lygia Fagundes Telles




Lygia Fagundes Telles, importante escritora brasileira e amiga de Clarice Lispector, «deu» uma entrevista a Alexandra Lucas Coelho. que foi publicada na revista «Pública» do passado domingo. Digo «deu», porque de facto ela não tinha tempo para a entrevista, supostamente por ter de ir para a fisioterapia. Mas simpaticamente, como só os grandes homens e mulheres sabem ser, apresentou-lhe uma série de perguntas e respostas num papel, acabando no entanto à conversa com a entrevistadora, que lhe captou as atenções.
No alto dos seus magníficos 88 anos, a «mais amada escritora viva no Brasil», diz coisas que só a sabedoria podem dizer. Diz-se dela na entrevista:
«O mistério de Lygia F.Telles é como um coração tão claro toca no coração mais escuro.»
Do seu «encontro» com um motoqueiro que ela pensava que a ia atacar e roubar, ela diz:

...Mas de repente viu naquele encontro o nó da escrita: medo e paixão. O motoqueiro era o seu leitor.

E sobre as dificuldades de se ser escritora no passado (tal como no presente, talvez já mais apaziguadas, conforme os locais e os tempos), diz a escritora:

Sofri muito, muito, no começo da carreira. As pessoas não acreditavam. Mulher era para casar, ser rainha da casa, no máximo tocar piano.
.............................................................................................................
Meu segundo marido tinha uma frase muito boa quando eu me queixava: «Seu problema é real ou existencial? Real, eu resolvo, te levo no médico. Mas desespero, dor, luta, esperança, frustração, medo da morte, aí você resolve em seus textos».

Era um homem sábio também, este segundo marido!
Outro facto interessante, contado por Lygia:

...Jorge Luís Borges, sentado a um canto depois de uma homenagem em S.Paulo, sussurrou a Lygia que sonhar era tudo, e para provar contou a história de um amigo que se matara porque deixara de sonhar.

Pois eu acredito, deixar de sonhar é perder o sentido belo da vida!
E mais adiante, diz:

Ou ainda Sartre e Beauvoir, que levaram Lygia a esta ideia: «A imortalidade seria a morte da própria vida. Só a ideia de que vamos morrer um dia, só essa ideia pode fazer a nossa existência mais feliz.»

E eu que tenho uma «relação» péssima com a ideia da morte, como quase todos os mortais, fiquei entusiasmadíssima: que bom, fico feliz por saber que vou morrer um dia!
No entanto, acho outra máxima ainda mais importante: enquanto a morte não vem, aproveita o dia! Muito bem aproveitado, mesmo!




quarta-feira, 11 de maio de 2011

«Viver com os outros» de Isabel da Nóbrega



«Viver com os outros» é um belo livro, de leitura agradável e todo em diálogo, directo ou indirecto livre.

Como que a dar a entender que viver com os outros é dialogar com eles, ou connosco próprios.
Num tempo de angústias e de solidão, em que é necessário mais do que nunca abrirmo-nos uns aos outros e falarmos uns com os outros, é importante ler-se este livro, que se passa todo no espaço de uma casa, sala-varanda-cozinha-sala, ao longo de uma só noite, em que alguns amigos se reunem.
Saliento estas linhas:

«Onde dois estiverem reunidos... Onde dois estiverem reunidos em meu nome, aí estarei Eu no meio deles...»
-Mas, querido, o que conta é que o sonho do homem seja maior do que a sua própria estatura...E, senhores, tanto nas pesquisas como na medicina, o fim é sempre maior do que cada um, porque o fim é os outros... 

Que bom que era, se assim fosse!
Entretanto, o meu sonho continua a ser maior do que eu!


sexta-feira, 6 de maio de 2011

«Amor-Perfeito» de Isabel del Toro Gomes




Amor-Perfeito
Se todos os amores
fossem perfeitos e grandes
como este pequeno amor-perfeito
não tinha havido nunca 
desgostos de amor!

O que era um  grande desgosto
pois deste modo
não tinham nunca
nascido para o mundo
biliões de poemas de amor
pequenos grandes médios
cantigas de amigo
sonetos odes elegias
camões pessoa shakeaspeare
não tinham sido ninguém!

Biliões de cartas de amor
não tinham sido escritas
biliões de pessoas
não tinham sofrido
nem um só desgosto de amor
o que era um grande problema
para a humanidade
pois o desgosto de amor
é tão necessário e urgente
para toda a pessoa
para qualquer escritor
que se todos os amores
fossem perfeitos
como o pequeno amor-perfeito
não sei o que teria sido
do mundo e do amor!


 


sexta-feira, 29 de abril de 2011

«Legenda para a vida de um vagabundo» e «Fábula» de Joaquim Namorado



Mais um homem das Ciências que se dedicou à poesia e às letras.
Joaquim Namorado nasceu em Alter do Chão em 1914 e morreu em 1986, em Coimbra. Licenciou-se em Ciências Matemáticas, foi professor do Ensino Secundário e, mais tarde, no Ensino Superior. Foi um dos membros mais destacados do grupo neo-realista coimbrão, colaborando em diversas revistas como a Seara Nova, Vértice, etc.
Os seus poemas polémicos e sarcásticos, sem grandes preocupações formais, exerceram grande influência na sua época. Sob o seu sarcasmo otimista esconde-se um lírico desesperado, que relembramos agora.


Legenda para a Vida de um Vagabundo

Nasci vagabundo em qualquer país,
minhas fronteiras são as do mundo.
Esta sina vem-me no sangue:
não me fartar! Um desejo morto,
mais de dez a matar.

O caminho é longo!...
-Mas nada é longe e distante
quando se quer realmente...
E nunca o cansaço é tão grande
que um passo se não possa dar.

                                   in «Aviso à Navegação»


Fábula

No tempo em que os animais falavam.
Liberdade!
Igualdade!
Fraternidade!
                                  in «Incomodidade»

sexta-feira, 22 de abril de 2011

«O que é um autor?» de Michel Foucault


Para mim, que sou defensora de que toda e qualquer obra literária tem marcas mais ou menos subtis da biografia do autor (indivíduo real), que podem surgir de mil e uma maneiras e sem que o próprio muitas vezes se aperceba disso, ler este livro foi uma descoberta. Descobri que para além do autor, algumas obras podem apresentar  a «função de autor».
De início, a ideia pareceu-me um pouco confusa, intelectualices de quem não tem mais nada para fazer, pensei eu! Mas depois, até achei bastante clara a forma como Michel Foucault expõe o problema.
O caso é que, segundo M.F., existem diferentes «eus» numa obra, literária ou não. Cada um deles situa-se num campo discursivo diferente.
Resumidamente, são os seguintes os traços característicos da FUNÇÂO AUTOR:

- a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que encerra, determina, articula o universo dos discursos;
- não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização;
- não se define pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de uma série  de operações específicas e complexas;
-não reenvia pura e simplesmente para um indivíduo real, podendo dar lugar a vários «eus», em simultâneo, a várias posições -sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar.

A partir de agora, vai ser um pouco mais complicado ler um livro. é que saber o nome do autor já não chega. Vou ter de descobrir dentro dele a função autor, com os seus vários «eus», se existirem. Espero que não existam muitos!

Crianças e jovens leitores dos meus livros, isto não é para vocês! Eu sou a única autora dos meus livros, a Isabel que vocês conhecem, a que está na foto. Nada de confusões!


«Páscoa ao correr do tempo» de Isabel del Toro Gomes






Páscoa ao correr do tempo




Neste lugar multicolor

Sinto o tempo a correr

Mas devagar

Olho as nuvens que cobrem o céu ainda azul

E pressinto a chuva que há-de cair

Sobre os campos verdes

Onde a erva se vê a brotar

As flores a florir

E os pequenos bichos a crescer

Mas devagar

Como o tempo a passar

 Bandos de pombos e de pássaros

Sobrevoam os telhados

Num eterno esvoaçar.

Como as ondas do mar

Correm para a praia

Sem tempo nem lugar

Assim sinto o tempo a correr

Muito devagar.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

«A Condição Humana» de André Malraux



André Malraux nasceu em Paris em 1901 e morreu em Créteil em 1976. Foi amigo pessoal de Camus, outro grande escritor, bem com de Charles De Gaulle. Participou ativamente na Resistência Francesa durante a ocupação da França pelos nazis, durante a Segunda Guerra Mundial.
Foi o que se pode intitular hoje de um escritor «engagé» e um grande pensador, empenhado em retratar todos os domínios da ação humana, desde a luta dos homens pelos seus ideais, o sacrifício da própria vida pela defesa duma «ideia», da liberdade ou da dignidade da condição humana.
O que se pode dizer mais deste grandioso livro escrito em 1933, que descreve a vida miserável dos habitantes de Xangai, nos anos vinte do século passado? Xangai surge-nos como uma cidade chinesa onde persistem concessões a países ocidentais, onde se cruzam pessoas de todas as nacionalidades e interesses vários. Franceses, chineses do regime despótico de Chiang Kai-Chek e chineses revolucionários levam ao extremo a condição humana na sua luta interminável e desesperada pelo poder.
Jorge de Sena, que prefacia e traduz a edição da Editora «Livros do Brasil», afirma que não se é o mesmo antes e depois de se ler esta obra.
Para mim, foi uma leitura sofrida e mesmo dolorosa em certas páginas. Mas valeu a pena. É um livro indispensável, uma grande lição de vida. Ainda bem que o li só agora, para perceber ainda melhor que os sofrimentos por que passamos na vida, e que nós julgamos os mais terríveis e os mais injustos, não são nada comparados com o sofrimento da humanidade inteira, ao longo dos séculos.-Pode enganar-se a vida muito tempo, mas ela acaba sempre por fazer de nós aquilo para que somos feitos. (Gisors)

Destaquei alguns pensamentos postos na boca de alguns personagens, autênticos princípios de vida que nos podem guiar nestes tempos conturbados:


-Vermelhos ou azuis - dizia Ferral, - os «colis» não deixarão por isso de serem «colis». Não acha que é  de uma estupidez característica da espécie humana que um homem que só tem uma vida possa perdê-la por uma ideia?
-É muito raro que um homem possa suportar, como hei-de dizer, a sua condição de homem. (Gisors)
Pensou numa das ideias de Kyo: tudo aquilo porque os homens aceitam deixar-se matar, para além do interesse, tende mais ou menos confusamente a justificar essa condição, fundamentando-a na dignidade: cristianismo para o escravo, nação para o cidadão, comunismo para o operário. Mas não tinha vontade de discutir as ideias de Kyo com Ferral. Voltou a este:
-É sempre preciso intoxicarmo-nos; este país com o ópio, o Islão com o haxixe, o Ocidente com a mulher...Talvez o amor seja sobretudo o meio que o ocidental emprega para se libertar da sua condição de homem...