Estive a reler e a recordar «Mas Deus é grande» de José Régio, o poeta que foi professor de Português e Francês, não porque quisesse realmente ser professor, mas por obrigação, para poder subsistir e tornar-se independente. Mesmo sendo filho de ourives.
Foi em Vila do Conde que José Régio nasceu, filho do ourives José Maria Pereira Sobrinho e de Maria da Conceição Reis Pereira, e aí viveu até acabar o quinto ano do liceu. Ainda jovem publicou os seus primeiros poemas nos jornais vilacondenses A República e O Democrático, dirigidos por seu tio e padrinho António Maria Pereira Júnior.
Depois de uma breve e infeliz passagem por um internato do Porto (que serviu de matéria romanesca para Uma gota de sangue), aos dezoito anos foi para Coimbra, onde se se licenciou em Filologia Românica, em 1925 com a tese As correntes e as individualidades na moderna poesia portuguesa. Esta tese na época passou um pouco ignorada, uma vez que valorizava poetas quase desconhecidos na altura, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro; mas, em 1941, foi ampliada e publicada com o título Pequena história da moderna poesia portuguesa.
Foi em 1927 que José Régio começou a leccionar Português e Francês num liceu no Porto, até 1928, e a partir desse ano em Portalegre, onde ensinou grande parte da sua vida no então Liceu Nacional de Portalegre (atual Escola Secundária Mouzinho da Silveira) de 1929 a 1962, ano em que se aposentou do serviço docente. Manteve-se em Portalegre até 1966, quando regressou definitivamente a Vila do Conde.
Em 1927, com Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões, fundou a revista Presença, que veio a ser publicada, irregularmente, durante treze anos. Esta revista veio a marcar o segundo Modernismo , que teve como principal impulsionador e ideólogo José Régio, que também escreveu em jornais e revistas como Seara Nova, Ler, etc.
Em Coimbra, no Café Central, reunira-se o grupo de jovens da Presença, incluindo Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões , que José Régio também frequentava.
Depois, nos seus anos de Alentejo, Régio presidira a nova tertúlia no Café Central, agora de Portalegre, que integrava entre outros o médico Feliciano Falcão, o pintor Arsénio da Ressurreição e o capitão Carlos Saraiva, entre outros.
Já nos últimos anos da sua vida, Régio foi de novo a figura tutelar de uma tertúlia que reunia semanalmente no Diana-Bar da Póvoa de Varzim, ou no restaurante Marisqueira em A-Ver-o-Mar (o "grupo dos sábados") a que compareciam regularmente Manuel de Oliveira, Luis Amaro de Oliveira, Orlando Taipa, Flávio Gonçalves e Pacheco Neves e a que se juntou Agustina Bessa-Luis.
Durante o tempo que passou no Alentejo, e para apoiar as suas apetências de coleccionador, Régio desenvolveu um pequeno negócio de comércio e restauro de antiguidades, e empregou artífices por sua conta para recuperar as suas próprias peças e aquelas que vendia.
Veio assim a reunir uma extensa e preciosa coleção de antiguidades e de arte sacra alentejanas que vendeu à Câmara Municipal de Portalegre em 1964, com a condição de esta comprar também o prédio da pensão onde vivera e de o transformar em casa-museu. Providenciou de igual modo para a sua casa de Vila do Conde e hoje em dia ambas as casas de Vila do Conde e de Portalegre são casas-museu, onde se expõe um rico acervo de arte sacra e de arte popular, as duas predileções artísticas de Régio.
Como escritor, José Régio é considerado um dos grandes criadores da moderna literatura portuguesa. Refletiu em toda a sua obra problemas relativos ao conflito entre o Homem e Deus, o artista e a sociedade, o Eu e os outros. Construiu a sua poderosa arte poética e ficcional num tom misticista e num intimismo psicologista com que analisava a problemática das relações humanas e da solidão do indivíduo, procedendo ao mesmo tempo a uma dolorosa autoanálise.
A escolha dum poema foi difícil, mas aqui vai um que me tocou especialmente.
Ode
Nuvens tocadas pelos ventos, ide!
Lá para além de vós, o céu não passa.
Contra as rochas erguidas e paradas,
Desfazei-vos na vossa eterna lide,
Ondas, flocos de espumas encrespadas…
Que a praia, não há onda que a desfaça.
Desfolhai-vos nas asas do tufão,
Rosas inda em botão esta manhã,
Folhas aos ventos troncos arrancadas!
Cinzas levais, só cinza!, em vossa mão,
Tempestades futuras e passadas!
Sobre a semente, a vossa fúria é vã.
Decorrei, dias meus já sem sentido
Senão o de ficar, que não é vosso.
Dissolvei-vos no ar, mãos revoltadas!
Gestos, formas, visões, sons, pó erguido,
Voltai ao pó das tumbas ignoradas!...
Que não se apaga a luz de além do poço.
Sou, como as nuvens sou que nada são,
E as ondas frágeis como vãs quimeras,
E as pétalas e as folhas desfolhadas,
E as formas fogo-fátuos da ilusão…
Correi, lágrimas fúteis enganadas!
Mas tu canta, minh'alma!, enquanto esperas.
in Mas Deus É Grande