Urbano Augusto Tavares Rodrigues
(Lisboa, 6 de dezembro de 1923 — Lisboa, 9 de agosto de 2013) foi um escritor e jornalista português.
Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.
“Em começos de Junho não há prazer, para mim, como o de tomar banho no Ardila, ao entardecer. A água está geralmente morna, suave: durante o dia parece castanha, da cor dos barros, mas àquela hora é de oiro fundido. […] Vou nadando, em braçadas vagarosas, pelo meio do rio. Páro, fico a flutuar, e vejo na Rola os chaparros, cujas pernadas descem quase até ao solo, e nos areais, que arrefecem, de ardentes ainda agora, os tufos rosados dos loendreiros. Cegonhas e andorinhas de água, e estas, um instante, mergulham no rio a cabecita, para beber. Nos choupos, a música do vento.”
À beira do Ardila, foi rural a infância de Urbano, num “monte” alentejano, perto de Moura, que confina com aquele afluente da margem esquerda do Guadiana. Esta paisagem ribeirinha foi o espaço físico e afectivo das suas aventuras de criança e cavalgadas de juventude – e, mais tarde, a geografia sentimental do escritor, um locus da sua “rota do paraíso”. Deste rio dirá, em outro conto: “Vadear o Ardila era um heróico contentamento, a grande proeza…”
Com nascente em Espanha, grandes variações do seu caudal e de águas pouco profundas, o Ardila alberga, ao longo do seu curso de 166 km, uma grande diversidade de habitats, com áreas quase selvagens e algumas espécies em vias de extinção (como o saramugo e o lince-ibérico).
O excerto acima apenas nos dá um pequeno vislumbre da paisagem que configura o seu troço final. Não longe da margem, avistam-se, na herdade da Rola, “os chaparros, cujas pernadas descem quase até ao solo”. Do montado, o olhar desce até à vegetação mais próxima do rio, sendo mencionadas duas espécies ripícolas autóctones: “nos areais, […] os tufos rosados dos loendreiros. […]. Nos choupos, a música do vento.” A paisagem delineada por este Ardila de curvas e contracurvas conformava um ecossistema de matagal mediterrânico, com sobreiro (Quercus suber), bosques baixos de loendro (Nerium oliander) e galerias dominadas por choupos (Populus alba).
Era nestes choupos do Ardila que as cegonhas-brancas (Ciconia ciconia) nidificavam, como o autor dirá também em A Luz da Cal: “os altos choupos do rio, com suas cegonhas”. Estas aves recorrem a locais variados para fazer os ninhos, podendo construí-los em árvores altas, como os choupos, geralmente ao longo de rios. Como se alimentam de insectos, peixes, anfíbios, répteis e pequenos mamíferos, procuram-nos em zonas de baixa vegetação ou dentro de águas pouco fundas.
Urbano recorda, com indelével remorso, um episódio da adolescência, passado nas imediações do rio, ao avistar “uma cegonha, linda, branca, voando em direcção ao choupo onde fizera ninho”. Jamais esta cegonha voou da memória do escritor, cujo requiem ele compôs, anos mais tarde, sob a forma do conto “A morte da cegonha”, que encerra a colectânea Histórias Alentejanas. Aliás, em vários dos seus contos se intui (ou flui?…) este invisível fio que liga, num amoroso triângulo, Ardila-choupos-cegonhas.
Amoroso é também o olhar que contempla, ao entardecer, as águas do Ardila: “Cegonhas e andorinhas de água vão e vêm, e estas, um instante, mergulham no rio a cabecita, para beber.” As poéticas andorinhas de água referidas por Urbano seriam, provavelmente, a ripícola andorinha-das-barreiras (Riparia riparia). De plumagem branca e castanha – quase como o Ardila “da cor dos barros” – é a mais pequena das cinco espécies de andorinhas que ocorrem em Portugal, avistada muitas vezes a voar rente às águas de rios, a baixa altitude, à caça de insectos.
Ao contrário das outras espécies, esta não constrói o seu ninho com lama, mas fá-los em colónias, escavando buracos em taludes, em barrancos verticais de areia, ou em areeiros, próximos de linhas de água. Nas margens do Ardila – perto da atalaia de onde, um dia, Urbano se aventurou a saltar para o rio – podemos observar, ainda hoje, um barranco com dezenas destes ninhos escavados na parede de terra.
Recordando, talvez, aquela parede esburacada de ninhos numa das derradeiras obras que publicou (A Última Colina), Urbano escreve: “Tenho buracos na minha memória”, mas lembra ainda (e é quase um convite…) “o passeio até à ribeira do Ardila, onde sempre me encantava aquele silêncio fresco, só cortado pelo murmúrio da água e pela música do vento nos choupos, hoje quase desaparecidos”. Vamos?
Joana Portela pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. A autora não segue a mais recente ortografia.
Esta é a sexta crónica da série “Escrita com Asas”.