Em 1904, Carlos Malheiro Dias, «o nosso maior romancista depois de Eça de Queirós» segundo João Gaspar Simões, escrevia assim sobre Lisboa e as lisboetas (elas e não eles), em tempos de Quaresma:
A Lisboa, que mais pareceu divertir-se durante o Carnaval, é a que mais simula rezar na Quaresma.
Não é conveniente pôr em dúvida a devoção da lisboeta. Mas a Quaresma oferece-lhe ainda um óptimo pretexto para sair de casa. E a lisboeta não tem por costume desperdiçá-los. Dobrado o dominó, com que intrigou em S.Carlos, a mulher de Lisboa examina escrupulosamente os seus vestidos pretos.
A moda, tanto como a liturgia, acrescentou às quatro estações do ano ainda mais esta. Enquanto dura a Quaresma, a lisboeta, que é terrivelmente preconceituosa, leva para a rua, dentro do regalo ou do indispensável, o seu livro de missa. E leva-o para a modista, para as lojas, para casa das amigas, para a Avenida ou para o Campo Grande. É duvidoso que se sirva dele. mas não o abandona. E, se não tem um carretel de linha ou um papel de agulhas para comprar - e isto basta para a ocupar durante uma tarde inteira - então a lisboeta, ao passar pelos Mártires ou pelo Loreto, sobe as escadas, despe a sua luva de suécia, vai rezar uma devoção em frente à capela do Santíssimo.
Mas hoje as igrejas não são, como há cem anos, verdadeiras escolas de socialibilidade, autênticos salões mundanos...Por isso também as igrejas apenas fazem, durante a Quaresma, um simulacro de concorrência às confeitarias. Raro é que a devota, para se restabelecer da comoção religiosa, não vá comer um bolo ao Ferrari, ao Marques ou ao Rendez-vous des gourmets.
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As actrizes adquirem com a prática a ciência de pisar o palco. A lisboeta possui a ciência nativa e subtil de pisar a rua.
Não há carruagens que a assustem, ajuntamentos que a embaracem. Alegre, com a cabecita no ar, os olhos vigilantes, ela vê tudo, cumprimenta todos os conhecidos, examina todas as vitrinas, lê todos os anúncios.
A rua de Lisboa, ninguém a conhece melhor do que ela. Sabe do conteúdo de todas as lojas como das gavetas da sua cómoda. Discute os preços, compara-os...
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Toda a empresa que desdenhe captar o seu interesse, arrisca-se a um desastre. Qualquer director de teatro, antes de aceitar um original, procura saber se agradará à mulher. O editor nunca esquece de perguntar ao homem de letras se o seu livro pode ser lido pela mulher.
in «Ciclorama Crítico de um Tempo»
Opiniões à parte, tanto sobre o mérito de Carlos Malheiro Dias, que me parece na realidade ser um grande escritor, como sobre o mérito das lisboetas dos inícios do século XX, este texto é um importante estudo sociológico dos usos e costumes dos tempos em que certas senhoras tinham todo o tempo do mundo para passear pela cidade, ir às compras, passar pelas igrejas, sem olhar o relógio e sem correr dum lado para o outro (agora só muito poucas se poderão dar a este luxo). E, pelo que parece, a importância da mulher nesses gloriosos tempos dos nossos avós, era bem maior do que nos tempos actuais, em certpos aspectos. Muito curioso!