quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

«Deve e haver» de Mário Mesquita



«Deve e haver» é um livro que reúne notas, crónicas e reportagens do professor, jornalista e ex-director do Diário de Notícias, em que o autor fala dos factos e fait-divers dos tempos dos anos oitenta. É, assim, um ótimo livro para se ler agora, trinta anos depois, para relembrar o que se fez e o que se disse nessa época de atentados (Camarate), de ADs, do Solidadriedade na Polónia e tantas outras coisas que esquecemos já. 
Do autor diz Eduardo Prado Coelho: «...E há o Mário Mesquita com uma prosa ladina...».
Vasco Pulido Valente acrescenta: «...um açoriano cético e, portanto, temível, chamado Mário Mesquita.»
Pena é que tenha abandonado a política em 1978 (ele lá sabe porquê), pois o seu espírito percutante e corajoso faz falta nos tempos que correm.
Nada mais atual do que esta nota (substituam-se os nomes à vontade do freguês):

O poder pessoal

A personalização é característica bem vincada da vida política portuguesa. Escolhem-se pessoas concretas, mais do que ideias abstratas. Opta-se por líderes tornados familiares pela TV, e não por fastidiosos programas impressos em brochuras que ninguém lê.
Fulanismo ibérico? Talvez, embora a tendência esteja generalizada na Europa e fora dela. Entre nós, tivemos os exemplos elucidativos de Sá Carneiro, Ramalho Eanes e, agora, de novo, o de Mário Soares, desta vez a nível interno do PS.
Será um bem ou um mal esta tendência? Todos condenam, em abstrato, as insinuações em que a personalização possa converter-se em poder pessoal, mas, em concreto, cada qual é mais sensível quando a pessoa é outra e o poder alheio...
Assim se compreende que setores da maioria desejem o reforço do poder pessoal de Soares no PS, na suposição de que desse modo será possível impedir o poder pessoal de Eanes no País. Ninguém pensa os cargos independentemente dos seus titulares; discutem-se as pessoas, por interpostas instituições...»

O texto acaba assim, em reticências. A história repete-se, não há dúvidas. Podíamos era tirar alguns ensinamentos do passado, para o presente ou futuro, se a memória não fosse curta e o tal «fulanismo ibérico» tão exacerbado!
Olhemos o caso dos belgas, que nem de governo precisam para se governarem! E têm a «batata frita» como herói nacional ( ao menos come-se e é bom)!

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

«Canção do lago secando» de Políbio Gomes dos Santos



Poeta quase desconhecido da maioria de nós, Políbio Gomes dos Santos nasceu em Ansião, em 1911, onde morreu com apenas 28 anos , vítima de tuberculose, implacável doença que vitimou tanta gente nos séculos XIX e XX.
Homem de raras qualidades, membro da academia coimbrã onde exerceu vários cargos directivos, fez parte do grupo do Novo Cancioneiro. Da sua poesia só ficaram duas obras, As três Pessoas (1938) e Voz que Escuta (1944). Na realidade, embora prometedor, o autor não teve tempo de libertar-se dos moldes«presencistas», ainda em voga.
Impressiou-me nele, em última instância, o seu lirismo impregnado  da dor de quem sabe que vai morrer, de quem não pode escapar ao seu destino fatal e injusto. Como neste poema:

Cancão do Lago Secando

Pela noite da minha trágica aventura,
Meu sofrimento é o achado que afago,
Se acordado, sofrendo,
E se a dormir, sonhando
Que sou lago.

Adeus, ó canas, cá me vou secando!
À míngua de nascente eu parto evaporado
Sem me ver partir!

Ainda se os que passam pudessem beber-me
Sem tornarem a passar
Pra maldizer-me...

Ainda se a menina reclinada à minha beira,
Que tanto e tanto me seduz ainda,
Viesse banhar-se
E depois se afogasse em mim, violada e linda...

Ainda se eu,
Profundo e vasto e longo,
Pudesse ter no mapa mancha azul e portos
E ser útil à navegação...

Finando-me abriria a justa e verdadeira cova
À minha sede e à minha direcção.

                                     in «Voz que Escuta»

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

«Quando olhei o céu» de Isabel del Toro Gomes

Que bom lembrar os poemas da minha juventude, quando ainda não sabia nada do amor, só sonhava com ele. Teria os meus 16 anos, 17? Ah, a flor da idade, a juventude a brotar no meio dos sonhos e dos vastos campos  de olivais... Tão simples e tão belo, genuinamente sábio, pois já sabia que nas rosas como no amor os espinhos não deixarão de coexistir.


Quando olhei o céu







Quando um dia olhei o céu

Vi nele os teus olhos límpidos.

Voltei a olhar o céu

E vi nele a tua dor infinita

De alguém que precisa de amor.



Quando um dia olhei o céu

Vi nele as flores dum jardim

De pétalas de todas as cores

E em cada ramo de rosa

Vi os espinhos do nosso amor.






«Sonhos» de Florbela Espanca




Sonhos

Viva o sonho que comanda a vida! Como neste poema de Florbela Espanca.
O amor existirá?
Há quem diga que só existem provas de amor.



Sonhei que era a tua amante querida,
A tua amante feliz e invejada;
Sonhei que tinha uma casita branca
À beira dum regato edificada...

Tu vinhas ver-me, misteriosamente,
A horas mortas quando a terra é monge
Que reza. Eu sentia, doidamente,
Bater o coração quando de longe

Te ouvia os passos. E anelante,
Estava nos teus braços num instante,
Fitando com amor os olhos teus!

E, vê tu, meu encanto, a doce mágoa:
Acordei com os olhos rasos d' água,
Ouvindo a tua voz num longo adeus!

                  Florbela Espanca

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

«As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média» de Álvaro Cunhal



Toda a gente conhece Álvaro Cunhal como figura política importante, tanto nos tempos do fascismo, como depois do 25 de Abril. Mas Álvaro Cunhal «historiador» e homem da cultura, muito poucos conhecerão. Pois é, este homem fez muitas outras coisas, além de dedicar toda a sua vida a um partido e a uma ideologia, de que nunca se desviou nem um milímetro: escreveu obras literárias, pintou e desenhou, e estudou história, muita história, com certeza, como se pode comprovar neste livro publicado em 1975, pela Editorial Estampa. Mais um achado fantástico nas estantes da minha casa.
Contradizendo o que o autor chama de «historiadores burgueses», Álvaro Cunhal procura dar-nos a sua visão da história, à luz do marxismo, completamente diferente daqueles outros, claro está. É fascinante apercebermo-nos, ao longo desta obra, que a história não é um somatório de acontecimentos e de personagens, mas sim a interpretação que cada um faz desses mesmos acontecimentos e personagens. Portanto, a História que se ensina nas escolas, é apenas uma História, tendo cada um de descobrir as outras Histórias ao longo da sua vida, conforme puder e tiver curiosidade.
Eis um excerto que achei muito interessante e actual, salvas as devidas distâncias:

Os historiadores burgueses têm apresentado sempre o casamento da filha única de D.Fernando com o rei de Castela, em 1383, como «erro» de um rei inconstante e imprevidente. A verdade é ter sido tal casamento uma manobra política da nobreza, manobra maduramente reflectida e de efeitos cuidadosamente previstos e desejados.
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Sentindo o terreno a fugir-lhe debaixo dos pés, incapaz de suster com os seus recursos próprios o movimento revolucionário ascendente, a nobreza procura deliberadamente a entrada em acção contra a revolução ascendente, do aparelho militar da aristocracia territorial de além fronteiras. Nessa sua política, a nobreza de então seguiu o caminho que sempre têm seguido as classes dominantes, quando sentem em perigo a sua existência.
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As classes parasitárias preferiram sempre, a uma vitória das forças nacionais progressistas, a dominação do seu país por um estado estrangeiro que abafe a revolução e lhes mantenha esses privilégios.

Interessante! Abstraindo da visão marxista do autor, substituindo o estado estrangeiro por uma «União Europeia», será que não nos está a acontecer o mesmo? Dão-nos estradas e depois tiram-nos tudo o resto, os nossos direitos mais básicos, tudo com a simpatia e a bênção da tal Potência Estrangeira. Até um dia!

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Português Homem de todas as raças- Isabel d.T. Gomes

Português Homem de todas as raças


Na fronteira do infinito


Sento-me a pensar


Que sou de todas as raças


E de nenhuma.






Na fronteira do infinito


Pressinto com estranheza


Que todas as raças vivem em mim


Se fundem no meu sangue genitivo


No meu ser e no meu espírito


E aprofundam o meu abismo.






Na fronteira do infinito


Sinto que todas as raças me habitam


E me abraçam


Olho as minhas mãos ciganas


Solto os meus cabelos moçárabes


Perpasso os meus olhos de África


Por todo o meu corpo asiático


Por onde correm


Sangues de todas as raças


E de nenhuma.






domingo, 6 de fevereiro de 2011

António Pedro




António Pedro da Costa nasceu em 1909, em Cabo Verde. Veio para Lisboa estudar Direito e Letras, tendo vivido depois em vários países. Viveu os últinos anos da sua vida em Moledo do Minho, onde morreu em 1966.
Esteve ligado ao teatro, tendo sido director, encenador e professor de teatro no Porto. A sua acção encontra-se ligada a todos os movimentos artísticos de vanguarda e foi um dos principais animadores e renovadores do nosso teatro.
Foi também pintor e escritor, pertenceu ao  Movimento Surrealista de Londres e foi à sua volta que se formou o primeiro grupo deste movimento, em Portugal.
Quero dar a conhecer aqui a sua faceta de escritor, ou melhor, a de poeta. A sua poesia vai evoluindo de uma lírica simplicidade para um barroquismo cheio de gosto pelo concreto, onde os temas do Minho raiano e marítimo e o surrealismo se foram cruzando cada vez mais.
Escolhi, assim, o poema intitulado

 Maresia

Neste mar à minha frente
O sol repoisa e os nossos olhos dormem...

-Caem saudades mortas como chuva miúda,
Ou sobem, trémulas, como o vapor das algas,
Ou ficam, extáticas como um bafo de areia,
Calmas, sobre a paisagem,
Como um véu de cambraia deixado...

Não sei se é o calor das algas,
Se é o bafo de areia que baila,
Ou se é a chuva miúda que cai neste dia de sol
Como um véu de cambraia deixado,

Sei que me lembram os signos do zodíaco
Em boa caligrafia,
Uns signos como nem sequer eu tinha imaginado!...

E este calor que dimana da terra e nos confunde com ela,
Nos aquece as pernas de encontro à areia, numa vida exterior

Com mais sangue que a nossa e, sobretudo, cheia
Duma inconsciência que se não parece com nada,
Esta respiração pausada como as ondas, de trás para diante
Fazendo, lentas, e desfazendo
A mesma curva humaníssima e sensível,
Faz-me escrever, devagar, e com letra de menino pequeno
Sobre o chão acamado, esta palavra
                                                              AMOR
                                                         (in Aventura, nº3)