domingo, 19 de setembro de 2010

Jorge Barbosa

Jorge Barbosa, poeta cabo-verdiano (1902-1971), quase desconhecido entre nós, deu a conhecer a tragédia humana das populações de Cabo-Verde nos seus poemas. Escolhi este poema por ser uma descrição perfeita, cheia de realismo, duma cena da vida quotidiana.

Ilha
Quando o barco alemão vem à ilha carregar sal
há um sobressalto íntimo de contentamento
na gente que fica a ver de terra.

À varanda da antiga casa do largo
olhos curiosos em direcção ao mar
atravessam as lentes baças
de velho binóculo do tempo dos piratas.


Toma certo ar garboso e oficial
com a bandeira nacional à popa
o escaler a remos
ao partir apressado ao vapor
com as autoridades todas do porto
e o empregado da firma carregadora
que leva uma grande pasta sob o braço...

Compram-se a bordo novidades
ouvem-se notícias de longe...
bebe-se
cerveja gelada...

O barco parte depois
e a Povoação resignada
retoma a monotonia habitual...

...à noitinha
à hora tagarela de em seguida ao jantar
os homens reúnem-se na rua principal
comentando as ocorrências do dia.

Vem então à baila aquela passageira de boca pintada
que seguia para o Congo Belga...
E da evocação da mulher estrangeira
ficou um sonho parado
em cada um...
                                (in Ambiente)



segunda-feira, 13 de setembro de 2010

José de Almada Negreiros

                                                                  auto-retrato
José de Almada Negreiros, nasceu em São Tomé em 1893 e faleceu em Lisboa em 1970.

retrato de Fernando Pessoa , por Almada Negreiros, 1954

Universalmente conhecido pelo retrato de Fernando Pessoa, como pintor e artista plástico, Almada Negreiros também foi poeta, romancista, ensaísta, crítico de arte, conferencista, dramaturgo, enfim, uma das mais notáveis figuras da cultura portuguesa. Um génio, na opinião de muitos.

                                                       Vitral da Igreja de Fátima, Lisboa

Na Igreja de Nossa Senhora de Fárima, em Lisboa, obra do Arquitecto Pardal Monteiro, que foi inaugurada a 13 de Outubro de 1938, são da sua autoria o portão do Baptistério, os frescos da cúpula da ábside e os magníficos vitrais, que são a parte mais visível e conhecida dos trabalhos de Almada Negreiros nesta Igreja.


A obra mais importante da sua derradeira fase criativa foi um grande painel em pedra gravada, destinado ao átrio da sede da Fundação Calouste Gulbenkian. Trata-se de Começar (1968-1969), uma obra fascinante, de complexa e mística concepção.


                         A.Negreiros a trabalhar nos painéis da Gare Marítima de Alcântara


                                                      Gare Marítima de Alcântara


 gravuras incisas na entrada da Faculdade de Letras de Lisboa


A sua poesia não ocupa, no conhecimento do público, o lugar a que tem direito. Aqui fica, então, o poema Rondel do Alentejo, de Almada Negreiros.
                                    Almada Negreiros com a mulher e pintora, Sarah Afonso

                                  Rondel do Alentejo
Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.

Meia-Noite
do Segredo
no penedo
duma noite
de luar.

Olhos caros
de Morgada
enfeitada
com preparos
de luar.

Rompem fogo
pandeiretas
morenitas,
bailam tetas
e bonitas,
bailam chitas
e jaquetas,
são as fitas
desafogo
de luar.

Voa o xaile
andorinha
pelo baile,
e a vida
doentinha
e a ermida
ao luar.

Laçarote
escarlate
de cocote
alegria
de Maria
la-ri-rate
em folia
de luar.

Giram pés
giram passos
girassóis
e os bonés,
e os braços
destes dois
giram laços
ao luar.

O colete
desta Virgem
endoidece
como o S
do foguete
em vertigem
de luar.

Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete de luar.
                                             in «Contemporânea»


                                              Com os filhos, na Quinta de Bicesse


terça-feira, 7 de setembro de 2010

Irene Lisboa


Mais um poema de Irene Lisboa:

                                    Jeito de escrever
Não sei que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.
Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei que diga, não sei que pense.
Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?

Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!
Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito.
                                                      (excerto dum poema inédito, in «Líricas Portuguesas de Jorge de Sena)

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Irene Lisboa

Na minha tentativa de dar a conhecer poetas, uns mais outros menos conhecidos, hoje é a vez duma mulher, Irene Lisboa, que assinou várias vezes sob pseudónimos de nomes masculinos, o que é muito revelador do receio de se ser mulher num meio maioritariamente masculino. Não nos esqueçamos que a rainha D. Maria I proibiu (de novo) as mulheres de pisarem os palcos.
Irene Lisboa nasceu em 1892 e faleceu em 1958. Foi professora primária, especializou-se em  questões pedagógicas, escreveu poesia, contos e muitas outras obras, colaborou em jornais e revistas, enfim é autora duma vasta obra bastante considerada.
Escolhi um pequeno poema dela, de grande ironia e muito actual. Hoje como noutros tempos, Portugal no seu melhor:

Este mundo é um curro.
E nem um curro será.
É um beco sujo,
um velho quintal.
As vizinhas malcriadas despicam-se, espreitam-se.
Lá estão elas de mãos na ilharga:
Tira, toma, é mentira, é falso...

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Roberto de Mesquita


Roberto de Mesquita foi um poeta quase desconhecido, no seu tempo e no nosso. Por isso, o menciono aqui. Poeta acoreano, nasceu em 1871 na Ilha das Flores e aí morreu em 1923. Foi um dos poetas simbolistas dos inícios do movimento em Portugal e foi Vitorino Nemésio quem o descobriu. A sua obra foi reunida num volume intitulado Almas Cativas.

Aqui fica um poema que denota a sua clasusura de ilhéu, virado para o mar:

                                   Ar de Inverno

Aves do mar que em ronda lenta
giram no ar, à ventania,
gritam na tarde macilenta
a sua bárbara alegria.

Incha lá fora a vaga escura,
uiva o nordeste aflitamente.
Que mágoa anónima satura
este ar de Inverno, este ar doente?

Alma que vogas a gemer
na tarde anémica, de vento,
como se infiltra no meu ser
o teu esparso sofrimento!

Que viuvez desamparada
chora no ar, no vento frio,
por esta tarde macerada
em que a esp'rança se esvaiu!...


domingo, 22 de agosto de 2010

António Gedeão

Na revista «Pública» de hoje vem uma entrevista interessante com a filha de António Gedeão (pseudónimo de Rómulo de Carvalho), Cristina Carvalho. Pareceu-me uma personalidade muito interessante, com opiniões com que me identifico no que diz respeito à semelhança entre homens e mulheres (nada feminista como eu) e que deve ter livros interessantes, que vou ter que ler. Ou não fosse ela filha de um poeta que põe todo o universo em verso, de uma forma simples e tocante. Um poeta de emoção pura, de palavras puras, de lágrimas puras...
Levou-me esta entrevista à procura dos poemas de António Gedeão, que já não lia há tanto tempo. Reli os que já conhecia (Venho da terra assombrada, do ventre da minha mãe; não pretendo roubar nada nem fazer mal a ninguém. Só quero o que me é devido por me trazerem aqui, que eu nem sequer fui ouvido no acto de que nasci... «Fala do homem nascido»; Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar...«Lágrima de preta».
Mas não são estes poemas, já bem conhecidos, que eu quero destacar aqui. Encontrei no «Poema do Homem Só» o retrato do homem de sempre e, portanto, do homem e da mulher do séc. XXI. Aqui fica:

Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem,
Os astros não se explicam:
arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de dentro se refracta
nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços,
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota, 
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.


Mas este íntimo secreto
que no silêncio concentro,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se e desflorar-se,
é nosso, de mais ninguém.  

   ( Teatro do Mundo )

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Fantasia

«Dá rédea solta à fantasia,
nunca é em nossa casa
que o prazer se encontra.»

                                                
John Keats
(Fantasia, séc. 19)

Discutível, mas percebe-se a ideia. A fantasia pode-nos levar para fora, sem nunca sair. É o que muitas vezes nos acontece, quando escrevemos.