quinta-feira, 21 de julho de 2011

«Satírica» de Mendes de Carvalho


Nas minhas últimas pesquisas pelas estantes da casa, encontrei mais um livro precioso, «Satírica» de um autor que me suscitou a curiosidade a ponto de o comprar em maio de1974: Merndes de Carvalho.
Nesses tempos de revolução, estávamos todos ávidos de ler coisas que eram proibidas até aí, ou de muito difícil acesso. O Círculo de Leitores publicou este livro em Março de 1974, arriscando muito. E eu comprei-o logo em maio, admirada certamente de haver mais para além das Cantigas de Escárnio e Maldizer, que constavam nos manuais do liceu e que «estudara» na Faculdade.
Mendes de Carvalho(1927-1988) foi poeta, dramaturgo e novelista, foi também na vida um homem de sete instrumentos, sempre muito próximo de grupos teatrais ("Casa da Comédia", "Teatro Estúdio de Lisboa e "Clube Palco"), orientou páginas literárias e colaborou em jornais e revistas literárias com poemas, artigos e ensaios sobre literatura e artes plásticas.
Hoje, visto que a poesia crítica e satírica de Mendes de Carvalho está praticamente esquecida, merece a pena ser lida e relembrada aqui:

Lua Nova
A lua foi dos poetas
dos habitantes do sonho
dos mendigos do luar
das donzelas
dos ciganos
e amiga dos ladrões
calendário dos amantes
e candeeiro da noite.
Vai ser um apeadeiro
em viagens de ida e volta
até que um self made man
a compre em quarto minguante
para várias luas de mel.


                              in «Satírica», de Mendes de Carvalho


terça-feira, 19 de julho de 2011

«Em nome da mãe» de Armando Silva Carvalho


Armando da Silva Carvalho nasceu em Olho Marinho, Óbidos, em 1938. Licenciou-se em Direito, foi advogado, jornalista, professor, tradutor e publicitário, mas acabou por se afirmar como escritor e poeta.
A sua escrita é marcada por um tom mordaz e satírico, que faz dela uma leitura bastante agradável e divertida, com tiradas de grande actualidade. 
Como esta, por exemplo:

Aos trinta a gente amadurece, aos trinta e cinco chega-se a velhinho e não encontra lugar na plateia da vida, e muito menos no palco. Olhai, vós que passais, viris, ao sol nascente, cuidai dos vossos anos, tratai dos vossos sonhos, que o tempo não engana, sois vós que insistis em ser enganados. E de repente é tarde.

                            in «Em nome da mãe», de Armando S. Carvalho



 

domingo, 17 de julho de 2011

«Regresso do Gerês» de Isabel del Toro Gomes




Regressámos do Gerês
Neste domingo ventoso
Lá ficaram os trilhos
Das verdes montanhas
Que calcorreámos sem cessar
Lá ficaram os bancos de pedra
As fontes as cascatas as lagoas translúcidas
Que refrescaram os nossos corpos
E saciaram a nossa sede




Lá ficou o sol que se vislumbra na manhã
Através dos verdes ramos emaranhados
Lá ficaram a lua e as estrelas
Iluminando o céu na noite sem luz
Lá ficaram as hortenses azuis
As lilazes flores do campo
Chorosas nos seus cachos





Lá ficaram os pinheiros bravos
Os eucaliptos brancos os vidoeiros
Os pastores solitários
E os seus rebanhos na vezeira
Lá ficaram as cabras montanhesas
A saltar de rocha em rocha
Com os lobos a espreitá-las

Lá ficaram o nosso rio Gerês
O pobre cavalo branco
Sozinho no meio do mato
As nossas borboletas amarelas
E de todas as cores esvoaçando sem parar
O nosso lagarto os nossos pássaros trepadores
O nosso canto debaixo do grande carvalho



Regressámos do Gerês
Neste domingo de vento
Mas não lhe dissemos adeus
Pois lá ficou um pouco de nós
Lá continua o nosso pensamento.

domingo, 3 de julho de 2011

«Se morrer é isto» de Isabel del Toro Gomes

Se morrer é isto

Desaparecer num segundo apenas

Desistir de tudo mesmo

Deixar a luta  labuta

Ir embora simplesmente

Desligar a máquina

Então adeus até nunca

Nem um até breve

À bientôt  je vous aime

Se morrer é isto

Então deve ser fácil demais


Se morrer é isto

Não sentir mais nada

Amor paixão dor

Ficar inerte e mais nada

Não acenar a mais ninguém

Olá viva tudo bem

Se morrer é isto

Deixar de cantar dançar pular

De fazer asneiras de falhar

De se aborrecer de ler  escrever

Então não tenho a certeza

Se quero este morrer.




sexta-feira, 1 de julho de 2011

«Soneto a J. Félix dos Santos» de Antero de Quental




Busto de Antero de Quental em Santa Cruz, Torres Vedras


Oliveira Martins, grande amigo de Antero de Quental e que sempre o acompanhou até ao fim, indo visitá-lo a Ponta Delgada, onde este se retirara desistindo de todos os compromissos assumidos, e onde  acaba por se suicidar em 1891, diz de Antero poeta que nunca viu natureza mais complexamente bem dotada, que dava alma a uma família inteira. É um poeta que sente, mas é um raciocínio que pensa. Enfim, sabe chorar, como todo o homem digno da humanidade.
Dos muitos sonetos que Antero escreveu, tomo nota deste que questiona, de forma aparentemente simples, a complexidade do Tempo:

A J. Félix dos Santos


Sempre o futuro, sempre! e o presente
Nunca! Que seja esta hora em que se existe
De incerteza e de dor sempre a mais triste,
E só farte o desejo um bem ausente!



 Ai! que importa o futuro, se inclemente
Essa hora, em que a esperança nos consiste,
Chega...é presente...e só à dor assiste?...
Assim, qual é a esperança que não mente?


Desventura ou delírio?... O que procuro,
Se me foge, é miragem enganosa,
Se me espera, pior, espectro impuro...

Assim a vida passa vagarosa:
O presente, a aspirar sempre ao futuro:
O futuro, uma sombra mentirosa.

                                                                                       Antero de Quental

  1.                    Estátua de Antero de Quental - escultor Salvador Barata-Feyo (1902-1990), no Jardim da Estrela
 

domingo, 26 de junho de 2011

«O primeiro camarada que ficou no caminho» de Manuel da Fonseca


Em 2011 comemora-se o centenário do nascimento do grande escritor neo-realista Alves Redol, mas também o de Manuel da Fonseca, que não lhe fica atrás na arte de contar histórias.
Aldeia Nova, livro de contos publicado em 1942, é disso um exemplo acabado.

Ah, Manuel da Fonseca, que falta me faz
essa tua arte de contar as coisas sérias da vida.
e também as risonhas, usando o compasso certo
com que o Zé Jacinto, teimoso,
ensaiava a heróica marcha Almadanim!
                                                                Alexandre Cabral

É nesse livro de contos fascinantes que se encontra o conto O Primeiro Camarada Que Ficou No Caminho, que relata na primeira pessoa a dor lancinante duma criança que assiste de longe à doença e morte do pequeno irmão, pois o enviaram para casa dos avós, para o afastarem do perigo e da dor. Pelo contrário, o seu sofrimento é ainda maior, por não poder ver a sua mãe, nem o irmãozito nem a sua casa.
Esta é uma história verdadeira, pois essa criança é o próprio Manuel da Fonseca e a criança que vem a morrer o seu irmão mais novo três anos, José. Mais uma vez a autobiografia a invadir a escrita.


Sentia-me só no mundo.
Em frente, a casa silenciosa e fechada para os meus olhos.
O avô partia de manhã para o campo e só voltava à noite. Minha avó andava atarefada na lida da casa, ralhando com as moças. O Toino andava no jogo da bola e nem minha mãe, nem minha mãe sequer aparecia à janela.
O Estróina já estaria bêbado?

É difícil para nós assistirmos insensíveis a esta realidade tão cruel para duas crianças tão pequenas, uma que morre outra que sobrevive vendo o irmão morrer, impotente. Mas esta era uma realidade quase banal da vida quotidiana dos nossos avós e pais: nos fins do século dezanove e princípios do século vinte, muita gente morria na infância ou ainda jovens, por doenças que agora têm felizmente cura e são mesmo banais.
Muita coisa tem mudado para melhor, a humanidade tem dado muitos passos em frente e alguns para trás, mas sempre se foi evoluindo. Tenhamos esperança então que assim continuem os homens dos nossos tempos, difíceis mas não perdidos ainda.
Enquanto há vida há esperança!

quinta-feira, 23 de junho de 2011

«Meditação..» de Ruy Cinatti



Ruy Cinatti nasceu em Londres em 1915 e é um dos grandes poetas do séc. XX, segundo Jorge de Sena.
Merece, assim, um lugar neste blogue que gosta de recordar poetas esquecidos.
Veio em criança para Lisboa, tendo viajado muito pelo mundo inteiro, nomeadamente o Oriente. Viveu alguns anos em Timor. Foi uma personalidade originalíssima, em que se cruzam as diversas vivências e ambiências de que foi protagonista.
Escolhi este poema, com a voz e a melancolia do mar :


Meditação

Tudo imaterial na praia rasa
Cheia de sol, ao fim da tarde,
Proa ao vento quebrada,
A vaga, entre rochedos, se ilumina.


É tudo imaterial, tudo neblina
Ténue que aos poucos arde,
Ao fim da tarde se desfaz, flutua,
E voo de ave desliza
Ao longe linha pura
Tudo imaterial na praia rasa.

Aqui ninguém me vê: amo a ternura.
 
                          Ruy Cinatti, in O Livro do Nómada Meu Amigo