Miguel Portas (1 de Maio de 1958/24 de Abril de 2012) foi um político que admiro e não esquecerei nunca, pela sua simplicidade, honestidade, grande capacidade de trabalho e coragem. Não era definitivamente um político como os outros, pautava-se por valores éticos, por uma seriedade e defesa dos mais desfavorecidos, hoje quase raros.
Foi também um homem culto e defensor da cultura. Foi jornalista, director da revista cultural Contraste (1986), redator do semanário Expresso (1988) e editor internacional da sua revista (1992-1994). Dirigiu ainda o semanário Já (1996), foi repórter da revista Vida Mundial (1998/1999), além de cronista do Diário de Notícias (2000-2006) e no semanário Sol (2008-2012). Foi co-autor e apresentador
de duas séries documentais para televisão: "Mar das Índias" (2000) e
"Périplo" (2004), sobre o Mediterrâneo. Teve três livros publicados: "E o
resto é paisagem" (2002), de crónicas, ensaios e entrevistas; "No
Labirinto" (2006), sobre o Líbano e "Périplo" (2009), dedicado ao
Mediterrâneo.
Um recado aos senhores livreiros e editores: em vez de encherem os escaparates com os livros de sua mãe, aproveitando a morte do filho para fins lucrativos, ficava-lhes melhor exporem os livros do próprio Miguel Portas, nem que fosse em sua homenagem.
Parece que o dinheiro fala sempre mais alto e é pena!
Nada melhor na hora da despedida que ler as palavras que ele escreveu, como se a sua voz ainda continuasse a soar nos nossos ouvidos.
Miguel Portas com os filhos na praia das Maçãs
Revolução: testemunho, por Miguel Portas
A cada um a sua revolução. A minha iniciou-se
ainda no tempo da outra senhora, uma expressão que caiu em desuso. E
coincidiu com outra, obrigatória pela lei da vida, a da passagem à
adolescência.
Crónica de Miguel Portas de abril de 1999, retirada no
livro “E o resto é paisagem”.
A minha revolução tinha, por isso, razões de urgência inusitada.
No meu país os estudantes do ensino secundário estavam separados entre
liceus e escolas técnicas. Os primeiros chegariam às universidades, os
segundos ficar-se-iam por um ofício qualificado. Não viria daí mal ao
mundo, se tal representasse uma escolha. Acontece que era um destino.
Filho de operário, operário serás. Filho de rico, garantia de doutor. Eu
estava no segundo grupo, mas nem por isso sentia menos a injustiça.
No meu país os estudantes do ensino secundário estavam separados por
sexos. Havia liceus para rapazes e liceus para raparigas. Alguns tinham
mesmo muretes de separação, seguramente para estimular a imaginação.
Elas estavam obrigadas a usar bata, a bata das escolas delas. Nós não,
que éramos candidatos a homens.
No meu país as universidades já eram mistas. Elas eram bem menos do que
eles. Elas sentavam-se, por ordem alfabética, nas primeiras filas do
anfiteatro. Eles, também por ordem alfabética, ocupavam o restante.
Assim era fácil marcar faltas: os alunos não tinham nome, na realidade
tinham número.
No meu país havia, como em qualquer outro, bons e maus professores.
Mas, com excepções, aquilo não era ensino, eram exames de memória. Um
colega não perguntava ao outro «já estudaste aquilo?», invectivava-o com
um «já decoraste?»
No meu país os nossos pais estavam condenados a entenderem-se sempre e
para sempre. Casavam pela igreja, não tinham direito a divórcio. Há quem
diga que o hábito faz o monge, mas a máxima nem sempre se aplica. Esta
obrigatoriedade sobrava para muitos filhos, principalmente sobrava para
muitas filhas.
O papel da igreja era omnipresente. Quem não fosse à missa era olhado
de soslaio. Mas nem isso evitava as crises de fé, que geravam hecatombes
familiares, ou vice-versa. Naquele tempo havia filhos e meio-filhos,
não havia apenas filhos. Eu tinha uma meia-irmã, adivinhem lá o que isso
seja. Durante anos não pôde visitar parte da família alargada. Culpada
por ter nascido à margem da lei que os homens atribuíam a Cristo.
E depois, no meu país havia ainda o espectro de uma condenação
antecipada: a guerra. Mais cedo ou mais tarde, iríamos lá bater com os
costados. Em nome da Pátria e da nossa missão civilizadora no mundo dos
cafres, assim era legítimo classificar os africanos.
Ah! E havia política. Lembro-me de ver Marcelo Caetano na televisão.
A emissão chamava-se “Conversas em família”. O patriarca falava e a
plateia escutava. Parece que esta forma de comunicação foi então uma
novidade absoluta no pacato mundo dos lusitanos, uma modernice.
Adivinhem como seria antes...
A revolução, portanto. E nada menos do que a revolução.
A revolução começa por ser uma construção contra a realidade, um mundo
como o que os primeiros cristãos escavaram para se protegerem das forças
do Império romano.
No mundo onde me envolvi, os rapazes e as raparigas eram iguais. Não
aprendíamos o que a escola nos dava, mas exactamente o que ela nos
escondia. Outras leituras, outras músicas, outra conversa. E outra
História.
Outra vida, também. Com maior ou menor tolerância das famílias,
conquistávamos o tempo. Tempo para reuniões, agitações ou
manifestações-relâmpago de alta adrenalina. Mas tempo também para
acampamentos e namoros, tempo até para, à boleia, se conhecer Paris ou
visitar a meca das liberdades, Amesterdão. No fundo, tempo para se
confirmar como Portugal ficava mesmo muito longe do mundo. Do mundo e do
nosso mundo.
Depois a revolução é a própria revolução, quando a nossa
«contra-realidade» emerge como realidade. Há imagens que ficam para uma
vida. A minha é a de um velho contínuo do Liceu Passos Manuel, homem
corajoso que nunca denunciara as acções de agitação que, amiúde, se
faziam. Foi ele quem, no dia 26 de Abril, se colocou na frente dos
estudantes, hino nacional saindo da sua boca, antes da invasão das
instalações do Secretariado para a Juventude (antiga Mocidade
Portuguesa) do liceu. Esperara uma vida por aquele gesto e era
comunista.
Lembro-me também da noite em que ficou claro que havíamos perdido. Da
preocupação nos rostos, no desespero de alguns porque não era assim que
estava escrito. E recordo-me também do alívio com que ouvi Melo Antunes
nessa noite. Perdera-se, mas não se perdia tudo.
Perdemos? Uma revolução incompleta é uma revolução falhada? Talvez a
História venha a dizer-nos que sim, ou talvez esta não seja a boa
pergunta. Com ou sem revolução estaríamos hoje onde estamos, como diz
Saramago? Mas como é possível não se ter superado ainda na cultura da
esquerda a submissão estalinista aos resultados como critério de
verdade? Como é possível continuar a desvalorizar o modo – neste caso, a
revolução – face às finalidades? No limite, revolução é atitude,
atitude de vida. O que ela, quando ocorre, tem de extraordinário, de
único e insubstituível, é que marca quantos com ela se travam de razões.