quinta-feira, 11 de novembro de 2021
David Mourâo- Ferreira »Maria Lisboa»
domingo, 10 de outubro de 2021
«POEMA DESTINADO A HAVER DOMINGO» de Natália Correia
Natália de Oliveira Correia nasceu em S. Miguel, no arquipélago dos Açores , em 1923 e morreu em Lisboa, em 1993.
Foi uma escritora e poeta portuguesa, tendo ainda desempenhado várias acções ao nível da cultura e do património, na defesa dos direitos humanos e dos direitos das mulheres.
POEMA DESTINADO A HAVER DOMINGO
E a cor dum navio em movimento.
E como ave, ficar parada a vê-la
E como flor, qualquer odor no vento.
Basta-me a lua ter aqui deixado
Um luminoso fio do cabelo
Para levar o céu todo enrolado
Na discreta ambição do meu novelo.
Só há espigas a crescer comigo
Numa seara para passear a pé
Esta distância achada pelo trigo
Que me dá só o pão daquilo que é.
Deixem ao dia a cama de um domingo
Para deitar um lírio que lhe sobre.
E a tarde cor-de-rosa de um flamingo
Seja o tecto da casa que me cobre
Baste o que o tempo traz na sua anilha
Como uma rosa traz Abril no seio.
E que o mar dê o fruto duma ilha
Onde o Amor por fim tenha recreio.
segunda-feira, 20 de setembro de 2021
«Desenho de Rapariga» de Saul Dias
O poeta, irmão de José Régio, é conhecido sobretudo como pintor, assinou Júlio, e é autor de uma obra plástica notável.
Da sua obra poética escolhi este poema, que sublinha a beleza e singeleza duma jovem: Retrato de Rapariga.
Desenho de rapariga
Corpo suave,
de traços finos,
modulados trinos
ao entardecer…
A linha esguia
que delimita
e acaricia
o braço de ave
é tão bonita…
Quase mulher…
Quase criança…
Toda pureza…
— Vede
a beleza
como se enlaça
na sua trança!
sábado, 21 de agosto de 2021
«Asas» de Luisa Dacosta
Maria Luísa Saraiva Pinto dos Santos, mais conhecida pelo nome literário de Luísa Dacosta (Vila Real 16 de Fevereiro de 1927 - Matosinhos, 15 de Fevereiro de 2015
quarta-feira, 11 de agosto de 2021
«Ode ao gato» de pablo Neruda
Para os que estimam os gatos como seus animais de companhia, aqui fica a Ode ao Gato, de Pablo Neruda.
Com ilustrações das minhas gatas, Luna (preta e branca) e Sammy
Ode ao gato
Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, voo.
O gato,
só o gato
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do pressentimento ao rato vivo,
da noite até seus olhos de ouro.
Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma só coisa
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e subtil é como
a linha da proa de um navio.
Seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogar as moedas da noite.
Oh pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
seguramente não há
enigma
na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso,
talvez todos o acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.
Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço ao gato.
Tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com seus extravios,
o por e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casaca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
o seu olho tem números de puro.
Paulo Neruda
segunda-feira, 19 de julho de 2021
«Pastoral» de António Gedeão
PASTORAL
duas folhas iguais em toda a criação.
Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há de certeza, duas folhas iguais.
Limbo, todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
baínha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas.
Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.
Nas formas presentes,
nos actos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.
Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelo nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.
Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.
É dessas que eu sou.
sábado, 10 de julho de 2021
«Silencio» de Octávio Paz
Octavio Paz Lozano
Nascido na Cidade do México em 1914, morreu na mesma cidade em 1998.
Foi um poeta, ensaísta e tradutor, tendo recebido o Nobel da Literatura em 1990.
«Cada leitor é outro poeta; cada poema, outro poema.»
«O poema deve provocar o leitor; obrigá-lo a ouvir - a ouvir-se».
Octávio Paz
Silêncio
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.
Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra"
Tradução de Luis Pignatelli