quarta-feira, 11 de agosto de 2021

«Ode ao gato» de pablo Neruda

 Para os que estimam os gatos como seus animais de companhia, aqui fica a Ode ao Gato, de Pablo Neruda. 

Com ilustrações das minhas gatas, Luna (preta e branca) e Sammy




Ode ao gato 

Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, voo.
O gato,
só o gato
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do pressentimento ao rato vivo,
da noite até seus olhos de ouro.

Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma só coisa
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e subtil é como
a linha da proa de um navio.
Seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogar as moedas da noite.

Oh pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
seguramente não há
enigma
na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso,
talvez todos o acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.

Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço ao gato.
Tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com seus extravios,
o por e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casaca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
o seu olho tem números de puro.

Paulo Neruda



segunda-feira, 19 de julho de 2021

«Pastoral» de António Gedeão

 


PASTORAL

Não há, não,
duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há de certeza, duas folhas iguais.

Limbo, todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
baínha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas.

Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.

Nas formas presentes,
nos actos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelo nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.
Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.

António Gedeão



sábado, 10 de julho de 2021

«Silencio» de Octávio Paz

 


Octavio Paz Lozano 

Nascido na Cidade do México em 1914, morreu na mesma cidade em 1998.




Foi um poeta, ensaísta e tradutor, tendo recebido o Nobel da Literatura em 1990.

«Cada leitor é outro poeta; cada poema, outro poema.»

«O poema deve provocar o leitor; obrigá-lo a ouvir - a ouvir-se».  


                                      Octávio Paz


Silêncio

Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios emudecem.

Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra"

Tradução de Luis Pignatelli





sexta-feira, 9 de julho de 2021

«Para ti meu amor» de Jacques Prévert (tradução de Zé Lima)




Para ti meu amor


Fui ao mercado dos pássaros

e comprei pássaros

para ti

meu amor

Fui ao mercado das flores

e comprei flores

para ti

meu amor 

Fui à feira das ferragens

e comprei cadeias

pesadas cadeias

para ti

meu amor

E depois fui à feira dos escravos

e andei à tua procura

mas não te encontrei

meu amor

Jacques Prévert




sábado, 3 de julho de 2021

«Frutos» de Eugénio de Andrade

https://www.youtube.com/watch?v=xu-KeQROjEM 

  • Frutos

    Pêssegos, peras, laranjas,
    morangos, cerejas, figos,
    maçãs, melão, melancia,
    ó música de meus sentidos,
    pura delícia da língua;
    deixai-me agora falar
    do fruto que me fascina,
    pelo sabor, pela cor,  
    pelo aroma das sílabas:
    tangerina, tangerina.

     

  • Eugénio de Andrade




Estanos no Verão, época de todas as frutas, de as experimentar e de se deliciar com os seus delicados sabores.
Também eu gosto de tangerinas, que felizmente agora há o ano todo. Como-as principalmente ao pequeno-almoço, porque se deve comer um fruto nesta refeição, são fáceis de descascar e sumarentas.
Gosto também das outras todas enumeradas pelo poeta. Ele tem bom gosto.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

«Dança do Vento» de Afonso Lopes Vieira (Leiria, 26 de janeiro de 1878 — Lisboa, 25 de janeiro de 1946)

 

Dança do Vento

O vento é bom bailador,
Baila, baila e assobia.
Baila, baila e rodopia
E tudo baila em redor.
E diz às flores, bailando:
- Bailai comigo, bailai!
E elas, curvadas, arfando,
Começam, débeis, bailando.
E suas folhas, tombando,
Uma se esfolha, outra cai.
E o vento as deixa, abalando,
- E lá vai!...
O vento é bom bailador,
Baila, baila e assobia,
Baila, baila e rodopia,
E tudo baila em redor.
E diz às altas ramadas:
Bailai comigo, bailai!
E elas sentem-se agarradas
Bailam no ar desgrenhadas,
Bailam com ele assustadas,
Já cansadas, suspirando;
E o vento as deixa, abalando,
E lá vai!...
O vento é bom bailador,
Baila, baila e assobia
Baila, baila e rodopia,
E tudo baila em redor!
E diz às folhas caídas:
Bailai comigo, bailai!
No quieto chão remexidas,
As folhas, por ele erguidas,
Pobres velhas ressequidas
E pendidas como um ai,
Bailam, doidas e chorando,
E o vento as deixa abalando
- E lá vai!
O vento é bom bailador,
Baila, baila e assobia,
Baila, baila e rodopia,
E tudo baila em redor!
E diz às ondas que rolam:
- Bailai comigo, bailai!
e as ondas no ar se empolam,
Em seus braços nus o enrolam,
E batalham,
E seus cabelos se espalham
Nas mãos do vento, flutuando
E o vento as deixa, abalando,
E lá vai!...
O vento é bom bailador,
Baila, baila e assobia,
Baila, baila e rodopia,
E tudo baila em redor!

Afonso Lopes Vieira, in 'Antologia Poética'



domingo, 14 de março de 2021

«Bucólica» de Miguel Torga




Neste domingo de Março, cheio de sol mas ainda frio, mais um poema de Miguel Torga, de grande beleza e inspiração na natureza.

Para nos animar e lembrar que a vida é o que temos de melhor, bem como a esperança.




 Bucólica


A vida é feita de nadas;
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caiadas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma Mãe que faz a trança à filha.



TORGA, M., Diário, 1941.