quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

«Cesária Évora» de José Manuel Simões

 

Ao ler a biografia de Cesária Évora, recentemente falecida, procuro  informações sobre esta misteriosa mulher, que me limitava a ouvir maravilhada, esquecendo-me então de perguntar quem seria a dona de tão melodiosa voz, o que estaria por trás das suas feições tristes e duras, quem era ela de facto. 
Este é um pequeno livro de 94 páginas, uma pequena e única biografia de Cesária, escrita por José Manuel Simões, que a entrevistou um dia, com algumas dificuldades de empatia, de início. Talvez agora, com o desaparecimento da Diva dos Pés Descalços (porque não aguentava mesmo os sapatos duros), surjam outros livros sobre a sua vida. Esta serve, no entanto,  para a conhecermos minimamente, para compreendermos a sua difícil ascensão aos grandes palcos, o seu percurso de vida de menina pobre do Mindelo, filha de um tocador de rua de violino e de uma ótima cozinheira em casa de brancos ricos. Órfã de pai aos sete anos, com sete irmãos (o número mágico «sete» talvez a tenha fadado), o seu destino era cantar e ajudar assim a sustentar a família e os filhos, mais tarde, como mãe solteira, destino da maior parte das mulheres de Cabo-Verde, que vêem os seus homens partir para longe. Ela assim pensou sempre, dizendo que levaria «a sua cruz até ao fim».

Afinal, a dor e a tristeza das mornas que cantava mais não eram que a própria dor e tristeza que lhe iam na alma, herança do sofrimento daquele povo a que pertencia.

A dor das mornas

Canta as mornas e as coladeira com uma voz dilacerada que reflete sofrimento. Com sublime mistério, em melodias suaves e ondulantes, mistura os ritmos de África, o sentimento dos blues e a saudade do fado.
Quem a ouve não fica indiferente. O amor, a tristeza, a esperança e até mesmo a alegria momentâneas são cantadas com melancolia, profunda e permanente, que emana da sua personalidade, ausente e distraída. Canta com o sentimento de alguém que resiste a todas as provas, alguém que se sente marcado pelo passado sofrido, o seu, e o de seu país, vitimado por ciclos de secas, emigração massiva e esperança num futuro melhor que sempre tardou em chegar.
É a rainha da morna, género fundamental, mais culto e mais antigo, da mistura de culturas que ao longo dos séculos marcaram Cabo Verde. Desde os anos 30 que essas melodias suaves e ondulantes acompanham a história do arquipélago, contando sensações complexas com simplicidade. Canto nostálgico possuído pela terra mítica. Dor de escravo que tão bem cantou em Sodade, tema que lhe abriu as portas do sucesso internacional e que retrata a deportação forçada de trabalhadores para a Ilha de S. Tomé e Príncipe, golfo da Guiné ou Angola. Prática herdada da escravatura e levada a cabo pelo Estado Novo. Entre 1950 e 1970, o Governo português enviou mais de 30.000 cabo-verdianos para outras colónias.

                                Cesária Évora, de José Manuel Simões
Pena é que tenha sido desta forma dramática e terrível que nós, portugueses, participámos para a história da criação das mornas e doutras  formas artísticas.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Partida

Cesária diz-nos adeus hoje, mas não partirá nunca do nosso pensamento e do nosso coração.
O caminho é longe, mas ela leva-nos a percorrê-lo.
Em Portugal, existe um único livro sobre a sua vida, escrito por José Manuel Simões e publicado pela Europa-América.
Este é um belo poema imortalizado pela sua voz única e doce.

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http://www.youtube.com/watch?v=I2JFelZF_SY


Partida

"Nha cretcheu ja`m s`ta ta parti
Oi partida sô bô podia separano
Nha cretcheu lavantá pam bem braçob
Lavantá pam bem beijob
Pam cariciob esse bô face.

Sel ta sirvi pa leval
Ma l`ta sirvi pa transportal
Caminho longe, separação
Ê sofrimento d`nhamor pa bô
Oi partida bô leval bô ta torná trazel.

Oi madrugada imagem di nh`alma
Ma nha cretcheu intrega`m sês lagrimas
Pam ca sofrê nem tchorá
Esse sofrimento ca ê sô pa mim
Oi partida bô ê um dor profundo.
Nha cretcheu ja`m s`ta ta parti
Oi partida sô bô podia separano
Nha cretcheu lavantá pam bem braçob
Lavantá pam bem beijob
Pam cariciob esse bô face.

Sel ta sirvi pa leval
Ma l`ta sirvi pa transportal
Caminho longe, separação
Ê sofrimento d`nhamor pa bô
Oi partida bô leval bô ta torná trazel.

Oi madrugada imagem di nh`alma
Ma nha cretcheu intrega`m sês lagrimas
Pam ca sofrê nem tchorá
Esse sofrimento ca ê sô pa mim
Oi partida bô ê um dor profundo."

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

«Natal 2011» de Isabel del Toro Gomes



Não nos deixemos derrubar pelas circunstâncias adversas dos tempos que vivemos e que nos calharam em sorte. Um Feliz Natal a todos os leitores e amigos, com muita esperança em dias melhores que hão de vir, se todos nós quisermos.


Natal 2011

Onde foram parar
Os natais felizes de outrora?
Onde estão
As DOCES recordações dos dias
Belos frios e nevados?
DOS PRESÉPIOS NAS RUAS CHEIAS DE LUZ
DAS ÁRVORES E CÉUS REPLETOS DE ESTRELAS?
DA ALEGRIA DO CIRCO E DAS CRIANÇAS
DAS CONSOADAS E DAS RABANADAS?
Porque se foram embora?
Nada deles parece restar
Para além das imagens
DOS POSTAIS ILUSTRADOS
À VENDA NAS LOJAS SEM GENTE
SEM DINHEIRO  SEM ESPERANÇA e sem nada.
E DO NOSSO PAÍS SÓ PARECE TER FICADO
O RETRATO DUM FANTOCHE DESARTICULADO.

                       
                                         Isabel del Toro Gomes, 19 de Dezembro 2011


domingo, 18 de dezembro de 2011

«Natal» de Álvaro Feijó

 Presépio montado no Parque de Campismo de Almornos.

 Num momento de dificuldades como o que vivemos, faz todo o sentido recordar este poema de Álvaro Feijó. 
Nem todos os meninos nascem num berço de ouro, muitos não têm mesmo berço nenhum. 
A história de Jesus é a história de todas as crianças do mundo que não foram bafejadas pela sorte de possuirem bens materiais. Mas muitas das vezes, são bem mais ricas do que as outras, pois não é o dinheiro que lhes dá felicidade,  antes o carinho e o amor dos que o rodeiam e os ajudam a crescer.
Aqui fica o testemunho do meu afeto e respeito por todas elas, através das palavras e da poesia de Álvaro Feijó.

Natal
Nasceu.
Foi numa cama de folhelho
entre lençóis de estopa suja
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar nas bordas dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroa de baionetas
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

                                 Álvaro Feijó, in Diário de Bordo