domingo, 22 de maio de 2011

«Húmus» de Raul Brandão



Raul Brandão nasceu em 1867, na Foz do Douro, e morreu em 1930, em Lisboa. É um dos poucos autores iniciados na corrente simbolista que não se dedicou à poesia, o que é realmente estranho.
«Húmus» foi escrito em 1917 e confirmou o escritor como modernizador da ficção portuguesa. Neste romance que mais parece um diário, o autor  reflete de forma atormentada os grandes temas da alma humana: a culpa, o bem e o mal, a angústia existencial, a vida e a morte, Deus.
Embora estes sejam temas importantíssimos para o leitor em geral, que levam à reflexão e ao enriquecimento pessoal e humano, este não é um dos livros que mais me agradaram, pelo seu tom demasiado pessimista e lúgrube mesmo.
No entanto, quero salientar algumas linhas, de grande beleza e profundidade:

Em lugar do uso de palavras fazia isto melhor com o emprego de dois tons - cinzento e oiro: uma nódoa que se entranha noutra nódoa. O sonho turva a vila como a primavera toca neste charco só lodo e azul: tinge-o e revolve-o.
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O hábito tem profundidades de légua.
A princípio olham-se desconfiados, com medo uns dos outros. Sem dúvida gostam de viver mais um século, mais dois séculos, mas não sabem ainda que emprego hão-de dar à existência. Não se lhes dava mesmo de morrer com tanto que continuassem a jogar o gamão no infinito. O que lhes custa mais a perder não é a vida, são os hábitos.

                                                                      in «Húmus»




terça-feira, 17 de maio de 2011

Lygia Fagundes Telles




Lygia Fagundes Telles, importante escritora brasileira e amiga de Clarice Lispector, «deu» uma entrevista a Alexandra Lucas Coelho. que foi publicada na revista «Pública» do passado domingo. Digo «deu», porque de facto ela não tinha tempo para a entrevista, supostamente por ter de ir para a fisioterapia. Mas simpaticamente, como só os grandes homens e mulheres sabem ser, apresentou-lhe uma série de perguntas e respostas num papel, acabando no entanto à conversa com a entrevistadora, que lhe captou as atenções.
No alto dos seus magníficos 88 anos, a «mais amada escritora viva no Brasil», diz coisas que só a sabedoria podem dizer. Diz-se dela na entrevista:
«O mistério de Lygia F.Telles é como um coração tão claro toca no coração mais escuro.»
Do seu «encontro» com um motoqueiro que ela pensava que a ia atacar e roubar, ela diz:

...Mas de repente viu naquele encontro o nó da escrita: medo e paixão. O motoqueiro era o seu leitor.

E sobre as dificuldades de se ser escritora no passado (tal como no presente, talvez já mais apaziguadas, conforme os locais e os tempos), diz a escritora:

Sofri muito, muito, no começo da carreira. As pessoas não acreditavam. Mulher era para casar, ser rainha da casa, no máximo tocar piano.
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Meu segundo marido tinha uma frase muito boa quando eu me queixava: «Seu problema é real ou existencial? Real, eu resolvo, te levo no médico. Mas desespero, dor, luta, esperança, frustração, medo da morte, aí você resolve em seus textos».

Era um homem sábio também, este segundo marido!
Outro facto interessante, contado por Lygia:

...Jorge Luís Borges, sentado a um canto depois de uma homenagem em S.Paulo, sussurrou a Lygia que sonhar era tudo, e para provar contou a história de um amigo que se matara porque deixara de sonhar.

Pois eu acredito, deixar de sonhar é perder o sentido belo da vida!
E mais adiante, diz:

Ou ainda Sartre e Beauvoir, que levaram Lygia a esta ideia: «A imortalidade seria a morte da própria vida. Só a ideia de que vamos morrer um dia, só essa ideia pode fazer a nossa existência mais feliz.»

E eu que tenho uma «relação» péssima com a ideia da morte, como quase todos os mortais, fiquei entusiasmadíssima: que bom, fico feliz por saber que vou morrer um dia!
No entanto, acho outra máxima ainda mais importante: enquanto a morte não vem, aproveita o dia! Muito bem aproveitado, mesmo!




quarta-feira, 11 de maio de 2011

«Viver com os outros» de Isabel da Nóbrega



«Viver com os outros» é um belo livro, de leitura agradável e todo em diálogo, directo ou indirecto livre.

Como que a dar a entender que viver com os outros é dialogar com eles, ou connosco próprios.
Num tempo de angústias e de solidão, em que é necessário mais do que nunca abrirmo-nos uns aos outros e falarmos uns com os outros, é importante ler-se este livro, que se passa todo no espaço de uma casa, sala-varanda-cozinha-sala, ao longo de uma só noite, em que alguns amigos se reunem.
Saliento estas linhas:

«Onde dois estiverem reunidos... Onde dois estiverem reunidos em meu nome, aí estarei Eu no meio deles...»
-Mas, querido, o que conta é que o sonho do homem seja maior do que a sua própria estatura...E, senhores, tanto nas pesquisas como na medicina, o fim é sempre maior do que cada um, porque o fim é os outros... 

Que bom que era, se assim fosse!
Entretanto, o meu sonho continua a ser maior do que eu!


sexta-feira, 6 de maio de 2011

«Amor-Perfeito» de Isabel del Toro Gomes




Amor-Perfeito
Se todos os amores
fossem perfeitos e grandes
como este pequeno amor-perfeito
não tinha havido nunca 
desgostos de amor!

O que era um  grande desgosto
pois deste modo
não tinham nunca
nascido para o mundo
biliões de poemas de amor
pequenos grandes médios
cantigas de amigo
sonetos odes elegias
camões pessoa shakeaspeare
não tinham sido ninguém!

Biliões de cartas de amor
não tinham sido escritas
biliões de pessoas
não tinham sofrido
nem um só desgosto de amor
o que era um grande problema
para a humanidade
pois o desgosto de amor
é tão necessário e urgente
para toda a pessoa
para qualquer escritor
que se todos os amores
fossem perfeitos
como o pequeno amor-perfeito
não sei o que teria sido
do mundo e do amor!


 


sexta-feira, 29 de abril de 2011

«Legenda para a vida de um vagabundo» e «Fábula» de Joaquim Namorado



Mais um homem das Ciências que se dedicou à poesia e às letras.
Joaquim Namorado nasceu em Alter do Chão em 1914 e morreu em 1986, em Coimbra. Licenciou-se em Ciências Matemáticas, foi professor do Ensino Secundário e, mais tarde, no Ensino Superior. Foi um dos membros mais destacados do grupo neo-realista coimbrão, colaborando em diversas revistas como a Seara Nova, Vértice, etc.
Os seus poemas polémicos e sarcásticos, sem grandes preocupações formais, exerceram grande influência na sua época. Sob o seu sarcasmo otimista esconde-se um lírico desesperado, que relembramos agora.


Legenda para a Vida de um Vagabundo

Nasci vagabundo em qualquer país,
minhas fronteiras são as do mundo.
Esta sina vem-me no sangue:
não me fartar! Um desejo morto,
mais de dez a matar.

O caminho é longo!...
-Mas nada é longe e distante
quando se quer realmente...
E nunca o cansaço é tão grande
que um passo se não possa dar.

                                   in «Aviso à Navegação»


Fábula

No tempo em que os animais falavam.
Liberdade!
Igualdade!
Fraternidade!
                                  in «Incomodidade»

sexta-feira, 22 de abril de 2011

«O que é um autor?» de Michel Foucault


Para mim, que sou defensora de que toda e qualquer obra literária tem marcas mais ou menos subtis da biografia do autor (indivíduo real), que podem surgir de mil e uma maneiras e sem que o próprio muitas vezes se aperceba disso, ler este livro foi uma descoberta. Descobri que para além do autor, algumas obras podem apresentar  a «função de autor».
De início, a ideia pareceu-me um pouco confusa, intelectualices de quem não tem mais nada para fazer, pensei eu! Mas depois, até achei bastante clara a forma como Michel Foucault expõe o problema.
O caso é que, segundo M.F., existem diferentes «eus» numa obra, literária ou não. Cada um deles situa-se num campo discursivo diferente.
Resumidamente, são os seguintes os traços característicos da FUNÇÂO AUTOR:

- a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que encerra, determina, articula o universo dos discursos;
- não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização;
- não se define pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de uma série  de operações específicas e complexas;
-não reenvia pura e simplesmente para um indivíduo real, podendo dar lugar a vários «eus», em simultâneo, a várias posições -sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar.

A partir de agora, vai ser um pouco mais complicado ler um livro. é que saber o nome do autor já não chega. Vou ter de descobrir dentro dele a função autor, com os seus vários «eus», se existirem. Espero que não existam muitos!

Crianças e jovens leitores dos meus livros, isto não é para vocês! Eu sou a única autora dos meus livros, a Isabel que vocês conhecem, a que está na foto. Nada de confusões!