sexta-feira, 31 de julho de 2020

Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental


Aqui transcrevo o artigo publicado na revista Wilder, da investigadora Ana Isabel Queiroz, de grande interesse para a defesa da biodivesidade e do ambiente. 
A «paisagem literária» em foco, desta vez, é a obra de Aquilino Ribeiro, O Homem da Nave.

Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

Em desconto dos meus pecados (…) proibi terminantemente que dentro da Quinta se fizesse mal aos bichos. No rol estava compreendida toda a espécie de aves, desde o pardal, a quem o Sr. de Buffon consagra a soberana antipatia de aristocrata, devoto do pavão e do condor, ao nebri, que não tem culpa de nascer sem outras artes que não sejam as de bandoleiro, e toda a ordem de roedores, desde o coelho ao texugo, excepto os ratos, é óbvio, contra os quais mobilizaria todos os rattenfanger deste mundo e do outro. E não lhes fazer mal significava: não lhes tirar os ninhos, nem meter-lhes medo com espantalhos ou caravelas, muito menos dar-lhes fogo. Tal como no parque Kruger.”
Aquilino Ribeiro, O Homem da Nave

“Kruger” evoca a vida selvagem. Na região sul-africana do Transvaal emergem áreas delimitadas para a proteção de recursos cinegéticos, muito apreciados pela população branca, desde meados do século XIX, numa história com contornos autoritários e repressivos sobre as comunidades locais. Em 1926, o estatuto de Parque Nacional chega a um território que absorve as anteriores reservas de caça, numa extensão considerável, a Este com fronteira a Moçambique.
Para muitos de nós, o Parque Nacional de Kruger é um símbolo internacional da conservação e um local extraordinário, que já visitámos ou gostaríamos de visitar. Ali, é possível observar uma parte significativa da biodiversidade africana, incluindo os grandes mamíferos, conhecidos como “big five” (elefantes, leões, rinocerontes, búfalos e leopardos) e cerca de 500 espécies de aves.
Este território tem um regulamento que limita as atividades humanas no seu interior. Proliferam aqui, ao abrigo de olhares vigilantes e de conservação da natureza, as espécies que se encontram muito ameaçadas pela caça, pelo furtivismo e pela destruição das suas condições de alimento e abrigo.
Intramuros, na Quinta de Soutosa (Moimenta da Beira), onde viveu a juventude e regressava a cada ano para uma temporada estival, Aquilino Ribeiro decretou que não “se fizesse mal aos bichos”. Era o seu parque Kruger. Seria, por isso, uma zona interdita a qualquer atividade que os assustasse ou os pusesse em perigo, “muito menos dar-lhes fogo”! Criou ali um santuário, só seu, em que os seres preciosos voavam e cantavam nos quintais e pomares.


Entrada para a antiga Quinta de Soutosa, hoje sede da Fundação Aquilino Ribeiro. Foto: Fundação Aquilino Ribeiro

Esta proteção universal às aves (e aos mamíferos, com exceção dos ratos) visou pôr fim às brincadeiras dos garotos trepadores das árvores, ágeis destruidores de ovos e ninhadas, aos tiros de caçadeira, e mesmo a evitar estratagemas para afugentar o passaredo: a colocação de armadilhas – costelas, esparrelas, chozes –, as negaças feitas de aves putrefactas, os engenhos barulhentos tinindo ao vento e os bonecos entrapados simulando gente.
Até a gata Defensora, animal de casa, estimado pelo escritor, esteve, uma vez, “de penitenciária na casa da lenha”, depois de ter tentado atacar um ninho com crias de gaio, “ninho serôdio de Julho, na coruta de uma das tílias, a meia dúzia de passos da habitação” (O Homem da Nave).

Gaio. Foto: Zeynel Cebeci/Wiki Commons

Aquilino Ribeiro conhece as aves e deleita-se com elas. Que importa se são comuns ou raras, discretas ou impositivas pela plumagem vistosa ou pelo canto melodioso? Juízos e preconceitos sociais, aqui, não se aplicam. Que importa se, como os pardais, ocupam o espaço em bandos, sem distância e sem receio? Que importa se, como as rapinas, tomam aqui e ali uma peça de caça, para sua própria alimentação? Ou se, para poder ter por perto as aves da sua paixão, é preciso dividir, com elas, os primores da quinta?
A propósito dos marantéus, que o escritor observa numa figueira junto à casa, escreve: “levam-me os figos-lampos e os vindimos, primeiros a amadurar. Em compensação, cantam-me o Salutaris, canto vibrante e amarelo com o corselete que vestem, ao desafio com o gemer das rolas” (Geografia Sentimental). Estes marantéus, também chamados papa-figos — disse-nos o seu guardião — são “oriundos do primeiro casal que beneficiou da minha política de paz, o qual proliferou a ponto que os descendentes se multiplicaram tão depressa como os filhos de Abraão” (O Homem da Nave).

Marantéu ou papa-figos. Foto: Dûrzan/Wiki Commons

A natureza próxima, que observamos da janela ou em volta da nossa casa, tal como aquela que, lá longe, sabemos habitar as estepes, as savanas, as florestas, ou as massas de água doce e o universo azul dos oceanos, é a riqueza mais preciosa do Planeta que coabitamos.
De facto, da quinta em que nos movemos, deveríamos fazer melhor do que um parque Kruger. Globalmente, não sobreviveremos de outro modo; com a nossa irresponsável atitude face aos nossos parceiros da biosfera, muitos animais e plantas caminham para a extinção.
Disso tomamos consciência, a cada leitura – para este efeito, recomenda-se Aquilino –, a cada evento excecional, a cada olhar maravilhado. O imperativo é fazer da Terra, com caráter de urgência, não apenas um lugar nosso, mas um lugar para todos os seres vivos, incluindo os humanos.

Ana Isabel Queiroz pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”.
Esta é a sétima crónica da série “Escrita com Asas”.

domingo, 26 de julho de 2020

Caramulo - passado, presente e futuro




Quem despreza o passado não entende que ele é presente e futuro. 


A capela e a casa de pedra, os espigueiros para guardar um ano de trabalho, até os bancos esculpidos em pedra e madeira para os doentes poderem apanhar o ar puro e fugirem da tuberculose, a peste branca. 



E ouvirem os pássaros.




sexta-feira, 24 de julho de 2020

«Uma Pequena Flor» de Entre Aspas




Algures no Caramulo












Encontrar numa imensidão 

esta pequena flor silvestre amarela-alaranjada solitária, linda

que eu nunca tinha visto nem conhecia 

é o deslumbramento total é a vida a lembrar-me 

que tudo é possível

e que o nosso Universo ainda tem muita coisa desconhecida.

































O local foi
No

Uma Pequena Flor

Entre Aspas

Uma flor
Uma pequena flor
Que eu colhi
Só a pensar
Em ti 
Eu bem sei
Que fui longe demais
Também sei
Que eu não farei jamais
Uma flor
Uma pequena flor
Que eu colhi
Só, só a pensar
Em ti
Eu bem sei
Que fui longe demais
Também sei
Que eu não farei jamais
Tó Viegas / Viviane

quinta-feira, 23 de julho de 2020

A minha borboleta-pavão (inachis io) do Caramulo



Um momento inesquecível destas férias no Caramulo:

A borboleta-pavão, nome botânico Inachis io, ( que tive a sorte, a enorme sorte), de fotografar no Caramulo, logo no 2º dia. 

Estava na piscina, onde havia as flores de que estas borboletas mais gostam, Budleia. 
Nascem em Julho (mais um factor de sorte) e voa até Maio, o que é muito tempo. 



Hibernam em estábulos e outras construções rústicas, preferindo as pradarias floridas ou florestas até 1200m de altitude.


É mais frequente no Norte e Centro. Mas pode aparecer em jardins e mesmo em áreas urbanas. Põe os ovos minúsculos em tufos de urtigas. 

É uma espécie ameaçada, devido á destruição do seu habitat pela agricultura que não preserva as orlas dos campos de cultivo. Esperemos que continue viva e que haja urtigas e flores destas liláses e outras por muito tempo ainda.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

«As Amoras» de Eugénio de Andrade


Amoras, o fruto silvestre doce como um manjar dos deuses, quando bem maduras e pretas.
E, no entanto, tão difícil de se obter, mãos e pernas arranhadas na infância, pois os «grandes» já não se dão ao trabalho de as apanhar.
Comi este ano três ou quatro, oferecidas, pois no Caramulo ainda se estavam a desenvolver, as flores cor-de-rosa eram mais que os frutos e bem lindas nos seus pequenos ramalhetes.
Amoras, as flores e os frutos do amor.

AS AMORAS

O meu país sabe a amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.


Eugénio de Andrade




sábado, 11 de julho de 2020

«À luz do Verão» in Histórias Alentejanas de Urbano Tavares Rodrigues



Urbano Augusto Tavares Rodrigues 

(Lisboa, 6 de dezembro de 1923 — Lisboa, 9 de agosto de 2013) foi um escritor e jornalista português.
Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

Em começos de Junho não há prazer, para mim, como o de tomar banho no Ardila, ao entardecer. A água está geralmente morna, suave: durante o dia parece castanha, da cor dos barros, mas àquela hora é de oiro fundido. […] Vou nadando, em braçadas vagarosas, pelo meio do rio. Páro, fico a flutuar, e vejo na Rola os chaparros, cujas pernadas descem quase até ao solo, e nos areais, que arrefecem, de ardentes ainda agora, os tufos rosados dos loendreiros. Cegonhas e andorinhas de água, e estas, um instante, mergulham no rio a cabecita, para beber. Nos choupos, a música do vento.”
Urbano Tavares Rodrigues, “À luz do Verão”, in Histórias Alentejanas



À beira do Ardila, foi rural a infância de Urbano, num “monte” alentejano, perto de Moura, que confina com aquele afluente da margem esquerda do Guadiana. Esta paisagem ribeirinha foi o espaço físico e afectivo das suas aventuras de criança e cavalgadas de juventude – e, mais tarde, a geografia sentimental do escritor, um locus da sua “rota do paraíso”. Deste rio dirá, em outro conto: “Vadear o Ardila era um heróico contentamento, a grande proeza…”
Com nascente em Espanha, grandes variações do seu caudal e de águas pouco profundas, o Ardila alberga, ao longo do seu curso de 166 km, uma grande diversidade de habitats, com áreas quase selvagens e algumas espécies em vias de extinção (como o saramugo e o lince-ibérico).

Troço do rio Ardila. Foto: Eurico Rmn/Wiki Commons

O excerto acima apenas nos dá um pequeno vislumbre da paisagem que configura o seu troço final. Não longe da margem, avistam-se, na herdade da Rola, “os chaparros, cujas pernadas descem quase até ao solo”. Do montado, o olhar desce até à vegetação mais próxima do rio, sendo mencionadas duas espécies ripícolas autóctones: “nos areais, […] os tufos rosados dos loendreiros. […]. Nos choupos, a música do vento.” A paisagem delineada por este Ardila de curvas e contracurvas conformava um ecossistema de matagal mediterrânico, com sobreiro (Quercus suber), bosques baixos de loendro (Nerium oliander) e galerias dominadas por choupos (Populus alba).




Era nestes choupos do Ardila que as cegonhas-brancas (Ciconia ciconia) nidificavam, como o autor dirá também em A Luz da Cal“os altos choupos do rio, com suas cegonhas”. Estas aves recorrem a locais variados para fazer os ninhos, podendo construí-los em árvores altas, como os choupos, geralmente ao longo de rios. Como se alimentam de insectos, peixes, anfíbios, répteis e pequenos mamíferos, procuram-nos em zonas de baixa vegetação ou dentro de águas pouco fundas.
Urbano recorda, com indelével remorso, um episódio da adolescência, passado nas imediações do rio, ao avistar “uma cegonha, linda, branca, voando em direcção ao choupo onde fizera ninho”. Jamais esta cegonha voou da memória do escritor, cujo requiem ele compôs, anos mais tarde, sob a forma do conto “A morte da cegonha”, que encerra a colectânea Histórias Alentejanas. Aliás, em vários dos seus contos se intui (ou flui?…) este invisível fio que liga, num amoroso triângulo, Ardila-choupos-cegonhas.
Amoroso é também o olhar que contempla, ao entardecer, as águas do Ardila: “Cegonhas e andorinhas de água vão e vêm, e estas, um instante, mergulham no rio a cabecita, para beber.” As poéticas andorinhas de água referidas por Urbano seriam, provavelmente, a ripícola andorinha-das-barreiras (Riparia riparia). De plumagem branca e castanha – quase como o Ardila “da cor dos barros” – é a mais pequena das cinco espécies de andorinhas que ocorrem em Portugal, avistada muitas vezes a voar rente às águas de rios, a baixa altitude, à caça de insectos.
Ao contrário das outras espécies, esta não constrói o seu ninho com lama, mas fá-los em colónias, escavando buracos em taludes, em barrancos verticais de areia, ou em areeiros, próximos de linhas de água. Nas margens do Ardila – perto da atalaia de onde, um dia, Urbano se aventurou a saltar para o rio – podemos observar, ainda hoje, um barranco com dezenas destes ninhos escavados na parede de terra.

Ninhos de andorinha-das-barreiras. Foto: Donald Hobern/Wiki Commons

Recordando, talvez, aquela parede esburacada de ninhos numa das derradeiras obras que publicou (A Última Colina), Urbano escreve: “Tenho buracos na minha memória”, mas lembra ainda (e é quase um convite…) “o passeio até à ribeira do Ardila, onde sempre me encantava aquele silêncio fresco, só cortado pelo murmúrio da água e pela música do vento nos choupos, hoje quase desaparecidos”. Vamos?

Joana Portela pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. A autora não segue a mais recente ortografia.


Esta é a sexta crónica da série “Escrita com Asas”.

quinta-feira, 9 de julho de 2020





Tejo


O rio da nossa cidade
É fonte de vida
De gritos das gaivotas
De patas amarelas, de cabeça-preta
Ou de tantas outras
É o rio que traz e leva quem trabalha
É a miragem
Para a outra margem.