domingo, 31 de julho de 2011

«O tempo os lugares» de José Coutinho e Castro



Gostei da simplicidade das suas palavras ( é sempre o mais difícil).
Gostei da cumplicidade entre o poeta e a escrita (é dificílimo).
Gostei.

A cozinha do gian

é preciso cortar o basilico
tão miudinho quanto possível
com o cutelo afiado
o perfume verde espalha-se pelo pão
os copos de chianti tomam a cor do sangue
e a pasta asciutta espera o tempero pressuroso
de amizade com alegria


a marta faz desenhos pelo chão
com tinta preta e água de sabão

os varais da janela
aberta para os telhados
deixam passar as vespas
da madona delle grazie
trindades nos sinos

a manuela
chama para a mesa
ri

do lado de salò
pelas encostas do lago
surgem núvens
carregadas de vento
portadas batem

a marta levanta os olhos de coral verde - luz
interroga surpresa

sentamo-nos em volta
uma vela acesa
tremula na penumbra
resiste

comemos
bebemos
sorrimos

                                      brescia, setembro de 1985



sábado, 30 de julho de 2011

«Setembro» de Silva Carvalho




Silva Carvalho nasceu a 8 de Fevereiro de 1948 em Vila do Conde.

Frequentou dois anos de Medicina na Universidade de Coimbra, antes de se exilar em Paris, França, em 1969.

Regressa a Portugal em 1975, onde se licencia em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1980.

Professor do ensino secundário, Leitor na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, E.U.A. (1985-89), na Universidade de Goa, Índia (1990-91) e na Universidade de Massachusetts, Dartmouth, E.U.A. (1997-2001).
Leccionou na Escola Secundária de Santa Maria em Sintra até 2008.

Conheci este poeta quando morava nos arrabaldes, à sombra da bela serra de Sintra e passávamos por ele fazendo compras, ele e nós. 
Tem fama de hermético, mas não me pareceu tanto assim. É um poeta diferente, um homem com uma sensibilidade e um dom da palavra fora do comum. Podia ser um grande poeta, se vivêssemos num país com oportunidades para quem tem realmente valor. Talvez no futuro venha a ser considerado um dos grandes poetas portugueses, leve prémios póstumos, etc.
Por enquanto é apenas um «poreta», como ele diz.
Gostei do seu modo de escrita em Setembro, meu mês de eleição.

Agora que agosto estrebucha na agonia, o verão
aparece. Não há estação que se cumpra idealmente.
Até no clima as variações, os percalços surgem.
Só que este verão é diferente. Setembro, mês
da despedida, será sempre setembro. O calor
extemporâneo nunca o fará agosto. Sabê-lo, assim,
é como ter meditado na essência do mundo, é
ter vivido no suspiro da reflexão quanto ser
arvora, pisa as margens da loucura.

Nunca dominei as palavras. Agora abandono-me.
Digam o que disserem, serei responsável. Mesmo
quando não concordo.


                                       Silva Carvalho in Setembro

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Poesia rima com anorexia



Quando tiverem um problema, não souberem o que fazer, se sentirem tristes ou não vos apeteça fazer nada, escrevam poesia, escrevam qualquer coisa! Foi o que fez a Ana Catarina, que se salvou da anorexia com a ajuda de todos e ... da poesia, segundo nos conta Mário Castrim:

É isso. Cada poema é isso: um acto de libertação. Não se sabe nunca qual será o seu destino. Nem todos podem ser Camões, ou Fernando Pessoa, ou Cesário Vewrde. Cada qual é como é, cada qual faz aquilo que pode. O que está em causa, agora, não será a qualidade artística, está o recurso a uma poderosa arma de defesa pessoal chamada poesia.
Foi com a sua ajuda que Ana Catarina subiu do fundo do poço. Por ela, voltará a ser criança e rir ao sabor da inocência. Poesia, aquela amiga a quem podemos contar tudo. E com quem podemos aprender tudo.
                                            Mário Castrim, O Lugar do Televisor


Nem mais! Muita gente triste e no fundo do poço deve haver no nosso país, já que somos um país de poetas!

quarta-feira, 27 de julho de 2011

A terra dos nossos pais



Catarina tem 13 anos. No fim do terceiro período escolar, surpreendeu o pai quando lhe perguntou como e onde desejava passar as férias, como prémio do seu trabalho.
«Quero passar uma temporada em Ílhavo ( a terra de nascimento do pai ) para saber a história dos meus antepassados pela tua banda».
Quando o pai da Catarina me contou isto, recordei as palavras do grande filósofo Cícero: «Aqueles que ignoram o que aconteceu no mundo antes de terem nascido serão sempre como se fossem meninos».
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Eis aqui a finalidade da História: conhecer, para crescer. Nenhum de nós é só o que é, porque aquilo que nós somos é aquilo que fomos. O que fomos, não em termos de pessoas, mas em termos de Humanidade.

                                   O Lugar do Televisor de Mário Castrim

terça-feira, 26 de julho de 2011

«O Museu da Inocência» de Orhan Pamuk



Ler esta obra de Orhan Pamuk suscitou em mim várias reações:

-irritação (pelo tamanho do calhamaço, que as minhas fracas mãos já não suportam e não dá jeito ler em qualquer lado; pelas situações repetitivas que parecem encher a narrativa «como quem enche chouriços»; pela «estupidez» das duas personagens principais Kemal e Fusun, que aos meus olhos de ocidental não parecem racionais);

-entusiasmo e curiosidade, devido às inúmeras peripécias que vão enriquecendo a narrativa e que nos deixam presos à leitura;

-admiração pela civilização turca e pelo modo de vida dos habitantes de Istambul, ricos e pobres, os seus hábitos, as suas grandezas e misérias, que fiquei a conhecer melhor.

Por tudo isto, valeu a pena ler este livro, oferecido pela minha amiga Ju. Fiquei com uma vontade enorme de ir à Turquia e a Istambul. Embora as duas para Istambul? Mais um sonho para realizar. Não poderei beber o  famoso raki, bebida nacional que é um licor derivado da uva e  com sabor a anis, que os personagens passam o tempo a beber, mas já sei o que vou pedir nos cafés, só para cheirar.

Quanto ao escritor, nasceu na Turquia em 1952. Grande estudioso e leitor insaciável, escreve desde os 23 anos, tornando-se conhecido em mais de 50 países. Em 2006 ganhou o prémio Nobel da Literatura.

Kemal diz a certa altura ao «autor»:

-Sim, era exatamente essa a atitude da Fusun. Compreendeu-a muito bem! - exclamou. - Gostaria também de lhe agradecer profusamente por ter resistido ao impulso de omitir os detalhes que feriram o seu orgulho. Sim, é esse o fulcro da questão, Orhan Bey: o orgulho. Com o meu museu quero ensinar, não só ao povo turco mas a todos os povos do  mundo, que devem orgulhar-se da vida que levam. Viajei por toda a parte e vi-o com os meus próprios olhos: enquanto o Ocidente se orgulha de si, quase todo o resto do mundo vive cheio de vergonha. Mas se os objetos que nos fazem sentir envergonhados forem exibidos num museu, transformar-se-ão imediatamente em posses das quais nos podemos orgulhar.

  

domingo, 24 de julho de 2011

Férias


A palavra «férias» vem do latim «feria» que significa feira. Entre os romanos, era o dia em que se prescrevia a cessação do trabalho. Talvez, digo eu para que as pessoas estivessem livres para feirar. Hoje, quando se diz que os alunos têm férias, isso não significa que vão às feiras. Claro que podem ir, se quiserem, mas a palavra já tomou um significado mais amplo.Férias são o tempo de repouso. A tarefa está cumprida, agora merecemos um bocadinho de liberdade...
Bom. O que sucede é que um rapaz ou rapariga não vão passar dois meses de papo para o ar. Depois é muito vaga a noção de descanso. Há pessoas que, para descansarem de uma semana de trabalho intenso, vão fazer campismo, por montes e vales, com uma pesada mochila às costas. Fiquemo-nos com esta sugestão: descansar é mudar de actividade... (diz Mário Castrim no livro O Lugar do Televisor).

Faço minhas as palavras de Mário Castrim: aproveitem bem as férias, mudem de actividades (mesmo em casa), façam coisas diferentes das que passam o ano todo a fazer. E se tiverem a possibilidade de ir à praia ou ao campo, às terras dos vossos pais e avós, descubram os tesouros que por lá estão escondidos. Abram bem os olhos que encontram, de certeza. Ah, e leiam um bom livro, claro! Boas férias! (digo eu)

sábado, 23 de julho de 2011

O sonho


















Bem haja quem inventou o sonho,capa que protege todos os humanos pensamentos, manjar que tira a fome, água que apaga a sede, fogo que afasta o frio, frio que tempera o calor e, finalmente, moeda geral com que todas as coisas se compram. (diz D. Quixote).

                                                              Cervantes

Nunca deixes de sonhar, o sonho é o que nos faz caminhar, o que nos mantém vivos. Só estamos vivos enquanto sonhamos.
Mas mantém-te ligado à terra! (digo eu)

sexta-feira, 22 de julho de 2011

«Jardim Suspenso» de Isabel del Toro Gomes


Jardim suspenso

 No quarto obscuro

Às sete horas e vinte e cinco minutos
E trinta segundos

O rádio tocava Chopin

As mãos saltitavam no piano

Ta-ta-ta-ta    ta-ta-ta-taaaa

Um allegro qualquer

E um pássaro talvez ciumento

Veio pousar na janela ou jardim suspenso

Dum 12º andar qualquer

E pôs-se a cantar com toda a garra

Ti-ti-ti-ti    ti-ti-ti-tiiii

Depois  o pássaro voou
E no quarto tudo mudou.


quinta-feira, 21 de julho de 2011

«Satírica» de Mendes de Carvalho


Nas minhas últimas pesquisas pelas estantes da casa, encontrei mais um livro precioso, «Satírica» de um autor que me suscitou a curiosidade a ponto de o comprar em maio de1974: Merndes de Carvalho.
Nesses tempos de revolução, estávamos todos ávidos de ler coisas que eram proibidas até aí, ou de muito difícil acesso. O Círculo de Leitores publicou este livro em Março de 1974, arriscando muito. E eu comprei-o logo em maio, admirada certamente de haver mais para além das Cantigas de Escárnio e Maldizer, que constavam nos manuais do liceu e que «estudara» na Faculdade.
Mendes de Carvalho(1927-1988) foi poeta, dramaturgo e novelista, foi também na vida um homem de sete instrumentos, sempre muito próximo de grupos teatrais ("Casa da Comédia", "Teatro Estúdio de Lisboa e "Clube Palco"), orientou páginas literárias e colaborou em jornais e revistas literárias com poemas, artigos e ensaios sobre literatura e artes plásticas.
Hoje, visto que a poesia crítica e satírica de Mendes de Carvalho está praticamente esquecida, merece a pena ser lida e relembrada aqui:

Lua Nova
A lua foi dos poetas
dos habitantes do sonho
dos mendigos do luar
das donzelas
dos ciganos
e amiga dos ladrões
calendário dos amantes
e candeeiro da noite.
Vai ser um apeadeiro
em viagens de ida e volta
até que um self made man
a compre em quarto minguante
para várias luas de mel.


                              in «Satírica», de Mendes de Carvalho


terça-feira, 19 de julho de 2011

«Em nome da mãe» de Armando Silva Carvalho


Armando da Silva Carvalho nasceu em Olho Marinho, Óbidos, em 1938. Licenciou-se em Direito, foi advogado, jornalista, professor, tradutor e publicitário, mas acabou por se afirmar como escritor e poeta.
A sua escrita é marcada por um tom mordaz e satírico, que faz dela uma leitura bastante agradável e divertida, com tiradas de grande actualidade. 
Como esta, por exemplo:

Aos trinta a gente amadurece, aos trinta e cinco chega-se a velhinho e não encontra lugar na plateia da vida, e muito menos no palco. Olhai, vós que passais, viris, ao sol nascente, cuidai dos vossos anos, tratai dos vossos sonhos, que o tempo não engana, sois vós que insistis em ser enganados. E de repente é tarde.

                            in «Em nome da mãe», de Armando S. Carvalho



 

domingo, 17 de julho de 2011

«Regresso do Gerês» de Isabel del Toro Gomes




Regressámos do Gerês
Neste domingo ventoso
Lá ficaram os trilhos
Das verdes montanhas
Que calcorreámos sem cessar
Lá ficaram os bancos de pedra
As fontes as cascatas as lagoas translúcidas
Que refrescaram os nossos corpos
E saciaram a nossa sede




Lá ficou o sol que se vislumbra na manhã
Através dos verdes ramos emaranhados
Lá ficaram a lua e as estrelas
Iluminando o céu na noite sem luz
Lá ficaram as hortenses azuis
As lilazes flores do campo
Chorosas nos seus cachos





Lá ficaram os pinheiros bravos
Os eucaliptos brancos os vidoeiros
Os pastores solitários
E os seus rebanhos na vezeira
Lá ficaram as cabras montanhesas
A saltar de rocha em rocha
Com os lobos a espreitá-las

Lá ficaram o nosso rio Gerês
O pobre cavalo branco
Sozinho no meio do mato
As nossas borboletas amarelas
E de todas as cores esvoaçando sem parar
O nosso lagarto os nossos pássaros trepadores
O nosso canto debaixo do grande carvalho



Regressámos do Gerês
Neste domingo de vento
Mas não lhe dissemos adeus
Pois lá ficou um pouco de nós
Lá continua o nosso pensamento.

domingo, 3 de julho de 2011

«Se morrer é isto» de Isabel del Toro Gomes

Se morrer é isto

Desaparecer num segundo apenas

Desistir de tudo mesmo

Deixar a luta  labuta

Ir embora simplesmente

Desligar a máquina

Então adeus até nunca

Nem um até breve

À bientôt  je vous aime

Se morrer é isto

Então deve ser fácil demais


Se morrer é isto

Não sentir mais nada

Amor paixão dor

Ficar inerte e mais nada

Não acenar a mais ninguém

Olá viva tudo bem

Se morrer é isto

Deixar de cantar dançar pular

De fazer asneiras de falhar

De se aborrecer de ler  escrever

Então não tenho a certeza

Se quero este morrer.




sexta-feira, 1 de julho de 2011

«Soneto a J. Félix dos Santos» de Antero de Quental




Busto de Antero de Quental em Santa Cruz, Torres Vedras


Oliveira Martins, grande amigo de Antero de Quental e que sempre o acompanhou até ao fim, indo visitá-lo a Ponta Delgada, onde este se retirara desistindo de todos os compromissos assumidos, e onde  acaba por se suicidar em 1891, diz de Antero poeta que nunca viu natureza mais complexamente bem dotada, que dava alma a uma família inteira. É um poeta que sente, mas é um raciocínio que pensa. Enfim, sabe chorar, como todo o homem digno da humanidade.
Dos muitos sonetos que Antero escreveu, tomo nota deste que questiona, de forma aparentemente simples, a complexidade do Tempo:

A J. Félix dos Santos


Sempre o futuro, sempre! e o presente
Nunca! Que seja esta hora em que se existe
De incerteza e de dor sempre a mais triste,
E só farte o desejo um bem ausente!



 Ai! que importa o futuro, se inclemente
Essa hora, em que a esperança nos consiste,
Chega...é presente...e só à dor assiste?...
Assim, qual é a esperança que não mente?


Desventura ou delírio?... O que procuro,
Se me foge, é miragem enganosa,
Se me espera, pior, espectro impuro...

Assim a vida passa vagarosa:
O presente, a aspirar sempre ao futuro:
O futuro, uma sombra mentirosa.

                                                                                       Antero de Quental

  1.                    Estátua de Antero de Quental - escultor Salvador Barata-Feyo (1902-1990), no Jardim da Estrela