sexta-feira, 29 de abril de 2011

«Legenda para a vida de um vagabundo» e «Fábula» de Joaquim Namorado



Mais um homem das Ciências que se dedicou à poesia e às letras.
Joaquim Namorado nasceu em Alter do Chão em 1914 e morreu em 1986, em Coimbra. Licenciou-se em Ciências Matemáticas, foi professor do Ensino Secundário e, mais tarde, no Ensino Superior. Foi um dos membros mais destacados do grupo neo-realista coimbrão, colaborando em diversas revistas como a Seara Nova, Vértice, etc.
Os seus poemas polémicos e sarcásticos, sem grandes preocupações formais, exerceram grande influência na sua época. Sob o seu sarcasmo otimista esconde-se um lírico desesperado, que relembramos agora.


Legenda para a Vida de um Vagabundo

Nasci vagabundo em qualquer país,
minhas fronteiras são as do mundo.
Esta sina vem-me no sangue:
não me fartar! Um desejo morto,
mais de dez a matar.

O caminho é longo!...
-Mas nada é longe e distante
quando se quer realmente...
E nunca o cansaço é tão grande
que um passo se não possa dar.

                                   in «Aviso à Navegação»


Fábula

No tempo em que os animais falavam.
Liberdade!
Igualdade!
Fraternidade!
                                  in «Incomodidade»

sexta-feira, 22 de abril de 2011

«O que é um autor?» de Michel Foucault


Para mim, que sou defensora de que toda e qualquer obra literária tem marcas mais ou menos subtis da biografia do autor (indivíduo real), que podem surgir de mil e uma maneiras e sem que o próprio muitas vezes se aperceba disso, ler este livro foi uma descoberta. Descobri que para além do autor, algumas obras podem apresentar  a «função de autor».
De início, a ideia pareceu-me um pouco confusa, intelectualices de quem não tem mais nada para fazer, pensei eu! Mas depois, até achei bastante clara a forma como Michel Foucault expõe o problema.
O caso é que, segundo M.F., existem diferentes «eus» numa obra, literária ou não. Cada um deles situa-se num campo discursivo diferente.
Resumidamente, são os seguintes os traços característicos da FUNÇÂO AUTOR:

- a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que encerra, determina, articula o universo dos discursos;
- não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização;
- não se define pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de uma série  de operações específicas e complexas;
-não reenvia pura e simplesmente para um indivíduo real, podendo dar lugar a vários «eus», em simultâneo, a várias posições -sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar.

A partir de agora, vai ser um pouco mais complicado ler um livro. é que saber o nome do autor já não chega. Vou ter de descobrir dentro dele a função autor, com os seus vários «eus», se existirem. Espero que não existam muitos!

Crianças e jovens leitores dos meus livros, isto não é para vocês! Eu sou a única autora dos meus livros, a Isabel que vocês conhecem, a que está na foto. Nada de confusões!


«Páscoa ao correr do tempo» de Isabel del Toro Gomes






Páscoa ao correr do tempo




Neste lugar multicolor

Sinto o tempo a correr

Mas devagar

Olho as nuvens que cobrem o céu ainda azul

E pressinto a chuva que há-de cair

Sobre os campos verdes

Onde a erva se vê a brotar

As flores a florir

E os pequenos bichos a crescer

Mas devagar

Como o tempo a passar

 Bandos de pombos e de pássaros

Sobrevoam os telhados

Num eterno esvoaçar.

Como as ondas do mar

Correm para a praia

Sem tempo nem lugar

Assim sinto o tempo a correr

Muito devagar.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

«A Condição Humana» de André Malraux



André Malraux nasceu em Paris em 1901 e morreu em Créteil em 1976. Foi amigo pessoal de Camus, outro grande escritor, bem com de Charles De Gaulle. Participou ativamente na Resistência Francesa durante a ocupação da França pelos nazis, durante a Segunda Guerra Mundial.
Foi o que se pode intitular hoje de um escritor «engagé» e um grande pensador, empenhado em retratar todos os domínios da ação humana, desde a luta dos homens pelos seus ideais, o sacrifício da própria vida pela defesa duma «ideia», da liberdade ou da dignidade da condição humana.
O que se pode dizer mais deste grandioso livro escrito em 1933, que descreve a vida miserável dos habitantes de Xangai, nos anos vinte do século passado? Xangai surge-nos como uma cidade chinesa onde persistem concessões a países ocidentais, onde se cruzam pessoas de todas as nacionalidades e interesses vários. Franceses, chineses do regime despótico de Chiang Kai-Chek e chineses revolucionários levam ao extremo a condição humana na sua luta interminável e desesperada pelo poder.
Jorge de Sena, que prefacia e traduz a edição da Editora «Livros do Brasil», afirma que não se é o mesmo antes e depois de se ler esta obra.
Para mim, foi uma leitura sofrida e mesmo dolorosa em certas páginas. Mas valeu a pena. É um livro indispensável, uma grande lição de vida. Ainda bem que o li só agora, para perceber ainda melhor que os sofrimentos por que passamos na vida, e que nós julgamos os mais terríveis e os mais injustos, não são nada comparados com o sofrimento da humanidade inteira, ao longo dos séculos.-Pode enganar-se a vida muito tempo, mas ela acaba sempre por fazer de nós aquilo para que somos feitos. (Gisors)

Destaquei alguns pensamentos postos na boca de alguns personagens, autênticos princípios de vida que nos podem guiar nestes tempos conturbados:


-Vermelhos ou azuis - dizia Ferral, - os «colis» não deixarão por isso de serem «colis». Não acha que é  de uma estupidez característica da espécie humana que um homem que só tem uma vida possa perdê-la por uma ideia?
-É muito raro que um homem possa suportar, como hei-de dizer, a sua condição de homem. (Gisors)
Pensou numa das ideias de Kyo: tudo aquilo porque os homens aceitam deixar-se matar, para além do interesse, tende mais ou menos confusamente a justificar essa condição, fundamentando-a na dignidade: cristianismo para o escravo, nação para o cidadão, comunismo para o operário. Mas não tinha vontade de discutir as ideias de Kyo com Ferral. Voltou a este:
-É sempre preciso intoxicarmo-nos; este país com o ópio, o Islão com o haxixe, o Ocidente com a mulher...Talvez o amor seja sobretudo o meio que o ocidental emprega para se libertar da sua condição de homem...

sábado, 2 de abril de 2011

«Prosaica» de José Blanc de Portugal



Neste país de poetas, a maior parte desconhecidos, mais um que foi grande e que deve ter caído no esquecimento. Para o relembrar, aqui estou eu.
D. José Bernardino Blanc de Portugal (grande nome!) nasceu em Lisboa em 1914 e faleceu em 2001. De formação na área das Ciências Geológicas, trabalhou nos serviços de metereologia em Lisboa, na ilha do Sal, nos Açores, em Luanda e em Moçambique. Publicou várias memórias científicas, exerceu crítica musical, foi fundador dos Cadernos de Poesia, onde publicou muitos dos seus poemas. Um homem de vastos interesses e conhecimentos, portanto, como há cada vez menos.
A sua poesia caracteriza-se por uma dignidade de tom, uma severidade austera da expressão, uma linguagem original, irónica e muito peculiar que, através de um humor quase negro ou de uma  discreta ternura, repercutem uma consciência trágica das contradições do mundo moderno.
A própria imagem da vida humana, ontem hoje e sempre, pelos vistos. «Prosaica» é um belo exemplo disso mesmo:

Prosaica
Se um dia vier a ser
-Tudo é bem possível,
Ou, melhor, o que é provável
Muito mais do que possível,
Entendamo-nos noeticamente-
Se um dia vier a ser - ia dizendo -
A besta apropriada para ter assento
Em um (ou mais )Conselhos de Administração,
Faço o propósito solene de assinar
Toda e qualquer lista de subscrição
Mesmo que caridosamente apenas
Político-literárias, de candidaturas...

O intuito óbvio podia ser;
Mas não é:
Quererei mostrar apenas que, por cá,
Ser uma besta é menos que insultuoso:
Taxonomia apenas, cientificamente,
O que ainda não é só mineral,
O calhau, do qual e aliás,
Se aproxima insensivelmente.

(Que possua real vida ou não
É objecto de outra dissertação
Mas, para a besta, que isso seja vida
É a consabida incerta sensação.)
                                                     Odes Pedestres