Na revista «Pública» de hoje vem uma entrevista interessante com a filha de António Gedeão (pseudónimo de Rómulo de Carvalho), Cristina Carvalho. Pareceu-me uma personalidade muito interessante, com opiniões com que me identifico no que diz respeito à semelhança entre homens e mulheres (nada feminista como eu) e que deve ter livros interessantes, que vou ter que ler. Ou não fosse ela filha de um poeta que põe todo o universo em verso, de uma forma simples e tocante. Um poeta de emoção pura, de palavras puras, de lágrimas puras...
Levou-me esta entrevista à procura dos poemas de António Gedeão, que já não lia há tanto tempo. Reli os que já conhecia (Venho da terra assombrada, do ventre da minha mãe; não pretendo roubar nada nem fazer mal a ninguém. Só quero o que me é devido por me trazerem aqui, que eu nem sequer fui ouvido no acto de que nasci... «Fala do homem nascido»; Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar...«Lágrima de preta».
Mas não são estes poemas, já bem conhecidos, que eu quero destacar aqui. Encontrei no «Poema do Homem Só» o retrato do homem de sempre e, portanto, do homem e da mulher do séc. XXI. Aqui fica:
Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.
Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem,
Os astros não se explicam:
arrefecem.
Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de dentro se refracta
nenhum ser nós se transmite.
Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.
Dão-se os lábios, dão-se os braços,
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.
Mas este íntimo secreto
que no silêncio concentro,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se e desflorar-se,
é nosso, de mais ninguém.
( Teatro do Mundo )