segunda-feira, 7 de agosto de 2017

«Luz ao fundo do túnel» de Isabel del Toro Gomes



Luz ao fundo do túnel



Já ninguém olha para o céu

Já ninguém admira a forma das núvens

Nem o brilho das estrelas

Nem a lua banhando-se no mar...


Nem o sol quando nasce e se põe

Nem as manhãs frescas e claras

Nem a água a correr nos rios

Nem os gritos do vento

Nem as montanhas altivas

Nem as rochas, nem as pedras...


Para quê olhar o céu?

Quem quer saber de constelações?

Já só interessam os milhões!

Quem quer saber das coisas e dos outros?

Já só interessa viver aos poucos
Sobreviver à angústia de cada dia.


Todo o dia é uma noite

Em que se percorre um imenso túnel

Sem encontrar  uma luz ao fundo.

                                                                            3 Out./95

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Henrique Abranches


Henrique Abranches nasceu em Lisboa em 1932 e embarcou para Angola com 15 anos de idade. Entre 1956 e 1959, iniciou a sua actividade intelectual, literária, na pintura e nos estudos etnográficos, em Sá da Bandeira.
Mais tarde, já em Luanda, escreve principalmente poesia, e textos de etnologia.
Preso pela PIDE, escreve na prisão o esboço do seu primeiro romance A Konkhava de Feti, que consegue fazer sair do país.
É enviado para Lisboa com residência fixa, onde continua o seu trabalho político fazendo palestras e colaborando com a Casa dos Estudantes do Império
É membro fundador da União dos Escritores Angolanos e da UNAP (União Nacional dos Artistas Plásticos), de que foi presidente.
As suas obras A Konkhava de Feti e O Clã de Novembrino (em três volumes) foram galardoadas com o Prémio Nacional de Literatura.
Faleceu na África do Sul em 2006.
Do seu livro de poemas Cântico Barroco, um dos poemas de que mais gostei foi  Ode Urbana.


ODE URBANA
 
Hoje não vou ter contigo, minha querida,
ainda que a meiguice me domine
e exerça em mim uma força magnética
que apaga as tuas palavras fúteis
e te reduz a um afago sublime.
Não vou ter contigo no Musseque Prenda.
Não quero ouvir falar de Lenine
nem da formidável Revolução Soviética
que aprendeste nos livros,
minha querida.
Nem da bravura singular de Hoji ya Henda,
a quem nunca deste um beijo de ternura
apesar da ternura que há na tua vida.
Nem no Quatro de Fevereiro estilizado
e conservado dentro de uma urna
- fogo de brasas que não arde,
porque nunca foi espevitado.
 
Vou por aí,
sob o Sol da tarde.
Vou andar sem ti, pela extensa avenida
perscrutando o rosto soturno
daqueles que mal olham por seu turno
como se o drama deles fosse a minha vida.
Vou estar em toda a parte, de muitas maneiras,
em busca do teu modo impertinente
de me refazer com graça infantil.
Vou andar à sorte das caras prazenteiras
que cruzarão comigo demoradamente,
com a alegria das crianças no recreio.
Vou piscar o olho a toda a gente
e fazer um convite à quitandeira.
que me vender o repolho mais subtil,
que me lembre a calote do teu seio.
Vou recordar a Maria da Fonte
sobre o pedestal – enorme e mamalhuda –
com a beleza magnífica e felpuda
da grande migália do Brasil.
- A sua imensa mão calcária,
que empunhava uma espada da Dâmocles
como um falo de bronze antigo,
jaz agora partida e solitária
num canto do quintal do meu amigo.
 
Hoje não vou ter contigo,
minha querida do Musseque Prenda.
E todavia,
vou procurar-te com arte em toda a parte,
na alegria dum rosto aventureiro
entre os rostos que vão rua fora.
Vou pensar em ti, na doçura de mel
das ondas do teu corpo marinheiro,
sem escutar o teu frasear de menina,
junto aos ângulos da muralha esmagadora
da velha Fortaleza de S. Miguel.
 
Vou recuperar-te, terna e franzina
nas velhas paredes, ou em cada esquina
caprichosamente envelhecida
do Palácio de Don’Ana Joaquina.
Vou entrar lá dentro, mudo e quieto.
Andarei pelo salão que dorme,
onde as paredes são um livro aberto.
Andarei pelo pátio, que a verdura cobre
dum vestido selvático e informe,
onde gemeram escravos de destino incerto,
onde germinaram amores de poeta.
Vou procurar a sacada nobre
onde eu seja Romeu e tu Julieta.
 
E ao cair da noite proletária
sobre as ruas agora desertas,
procurar-te-ei no voo dos insectos
que rodopiam em dança funerária
nas luzes sombrias da Avenida Deolinda.
Talvez te encontre de asas abertas,
ventre chamuscado, cheirando ainda
teus voluptuosos perfumes de Ambaka
que o meu ter-te sempre eterniza.
 
Voltarei à cidade baixa e quente
com sabor de Kisaka e odores de muamba,
em busca da cilada traiçoeira,
da facada cruel e precisa,
que seja diferente
das tuas vagas carícias de brisa.
Andarei pelas ruas da Mutamba
olhando sobranceiramente
- com a segurança de sua santidade –
mulheres que se dizem retornadas
dum passado de que foram sonegadas.
Na penumbra que escamoteia a verdade,
camuflando um perigoso companheiro,
elas aguardam os homens de dinheiro
escrevendo o dia-a-dia na cidade.
 
E tudo isso eu farei por ti, amor,
à procura do teu sabor na vida.
E todavia,
se ao longo dessa busca não te vir florida
neste caminho de sangue e de alegria,
se te souber esquecida no Musseque Prenda.
 
Não venhas ter comigo, minha querida!
Não venhas ofender a noite estupenda
de violência, de dor, de sórdidos amores,
sob um lampadário… à porta duma venda
algures
na Rua dos Mercadores…

quinta-feira, 27 de julho de 2017

«Os vagabundos da verdade» de Jack Kerouac


As trilhas são assim: ora flutuamos num paraíso shakespeariano e até esperamos ver, de um momento para o outro, ninfas do mar e faunas, ora, subitamente, nos debatemos, debaixo do sol escaldante, num inferno de poeira, urtigas e silvas...Tal como a vida.


-O mau Karma produz automaticamente bom Karma -Observou Japhy. -Não praguejes tanto e avança, pois em breve estaremos muito bem sentados em terreno plano.

in Os Vagabundos da Verdade, de Jack Kerouac, Editorial Minerva



quarta-feira, 26 de julho de 2017

Escola Comercial Patrício Prazeres



Escola Comercial Patrício Prazeres





Esta foi mais uma das escolas que frequentei que, embora não fosse por vontade própria que ali estava, nem estivesse vocacionada para os estudos que proporcionava, me deixou muitas e boas recordações.

Com apenas 13 anos, eu era de pequena estatura com essa idade, lá subia eu as escadinhas do Castelo todos os dias, para entrar às oito horas para a secção da Costa do Castelo, que funcionava para os alunos do 1º ano do curso complementar, no antigo edifício da Escola Primária nº 10. No inverno ainda era noite fechada, os degraus eram muitos, mas as minhas curtas pernas subiam ligeiras por ali acima. Devia de encontrar outras alunas no caminho, disso não me lembro, os perigos por ali já não rondavam, àquela hora matinal. Os que se tinham deitado tarde, vagueando pela cidade, estavam agora a dormir, as casas mal começavam a despertar nos seus recantos com sardinheiras.




Mais tarde, aos 14 anos, já no 2º ano do Curso Complementar de Comércio, fui então para a sede da Escola Patrício Prazeres, no Alto de São João (sabia vagamente que existia lá um cemitério, mas era coisa em que não pensava nem me preocupava).



O caminho era mais arrojado ainda, mas eu já mais experimentada e cheia de determinação.

Ia de autocarro dos Olivais Sul para a Praça do Chile, depois a pé pela Morais Soares (ou de eléctrico, mas preferia a pé para poupar o dinheiro e encontrar outras colegas pelo caminho). Chegada ao Alto de S. João, descia uma grande calçada com casebres de gente muito pobre, um bairro de lata, como se dizia então, que esse sim, me metia um pouco de medo.

Nunca aconteceu nada, salvo um dia em que uma petiza que nem 2 anos devia de ter, me atirou um alguidar de água para cima, e a água parecia ter qualquer coisa adocicado. Deve ter sido encomenda de algum irmão mais velho. Fiquei tão danada e estupefacta, que não consegui dizer nada.

Chegada à escola, lá me limpei o melhor possível, e nunca esqueci este episódio nem a figurinha da minúscula criança que me deitou uma mistela qualquer para cima!




Muitas outras pequenas aventuras me aconteceram nesta escola, onde encontrei professores que jamais esqueci, ótimos professores mesmo. Fiquei na Patrício Prazeres até aos 16 anos.

Também me lembro vagamente de alguns dos meus colegas, pena termos perdido o contacto, como acontece muitas vezes.
Desses tempos restou uma foto, que tinha esquecido e que encontrei há dias. Foi bom tê-la encontrado, nostalgias à parte.



Estes eram os meus colegas do curso complementar da Escola Patrício Prazeres, com a professora à esquerda (ao lado dumas crianças que estavam na praia, filhas de pescadores pela certa), em Sines, numa visita de estudo que fizemos, em março de 1971. Eu tinha 16 anos (ao centro, sentada no barco).

Enquanto que nos liceus andavam meninas para um lado e rapazes para o outro, e os professores eram, geralmente, pessoas distantes dos alunos, nas tais escolas «comerciais» ensinavam-se coisas como dactilografia, caligrafia, contabilidade, economia doméstica, mercadorias (esquisito!), francês e inglês comercial, matemática, química...E rapazes e raparigas viviam em comum no seu dia-a-dia escolar, aprendendo para a vida, sem agressões nem barreiras. Isto sim, era verdadeira integração de todos.

Era tudo bons rapazes e boas «moças»!


quinta-feira, 20 de julho de 2017

Pegadas na areia



Pegadas na areia

O mundo foi sempre caótico e injusto e continuará a ser.
O ser humano, uns maus outros bons, tendo até agora prevalecido em número os bons(ou mais ou menos), doutra forma já cá não estaríamos.
Esperemos que assim continue até ao infinito.


Na areia dos tempos, as pegadas do cão fazem uma linha recta, em frente uma da outra, marcando a sua determinação em seguir ou encontrar o seu objectivo.


As pegadas do Homem são quase lado a lado, para amparar o peso do corpo.
Ou será antes por indecisão, receio ou desejo de deriva?



domingo, 16 de julho de 2017

Educação e a Língua Portuguesa



Os pais, as crianças e a Língua Portuguesa

Os pais, as crianças e a língua portuguesa - estão todos um pouco baralhados.
Em menos de uma hora vi/ouvi uma criança a chorar a sério, aos berros, ao ser «embarcada» com outras numa canoa (Parque das Nações). Porque raio os pais a queriam fazer marinheiro/a à força, ou sem a devida preparação?

Mais à frente, um grupo de mamãs conversavam e carregavam com crianças já grandinhas ao colo. Uma delas perguntou à criança, tentando pô-la no chão, já cansada, claro: «Queres ir pelo chão?». Que raio de pergunta é esta? «Queres» pressupõe que a criança é que manda na mãe, que tem de ser escrava dele. «Pelo chão»? De que outro modo havia de ser, pelos ares?
Só se fosse no teleférico.
Felizmente que o passeio de domingo foi curto.





segunda-feira, 3 de julho de 2017

«Pôr-do-sol»


Todos os dias têm um fim
Todos os dias o sol se deita
No horizonte azul-rosa-lilás-roxo-cinzento
Mas neste dia
O pôr-do-sol foi assim

E eu estive a olhar
Esse céu infinito
Como se fosse eu que adormecia

Vi um pôr-do-sol
E tudo se tornou em magia. 
                                               Isabel del Toro Gomes