quarta-feira, 24 de novembro de 2010

«Elogio da Loucura» de Erasmo



Nestes tempos e lugares em que todos parecem estar loucos, ou fazer de nós loucos, é talvez pertinente relembrar esta obra escrita por Erasmo de Roterdão.
«O mundo é um palco e a vida um jogo de som e de fúria, representado por um louco» - esta metáfora é-nos cada vez mais muito familiar, ressoa na literatura europeia e surge com intensidade na obra de Erasmo.
No turbilhão de revoltas, guerras e contendas religiosas dos fins do século XV, este monge e reformador sensato e moderado, resolve fazer, em 1509, o elogio da loucura, da estultícia e da ignorância. Claro que ele o faz de forma irónica, num jogo de duplicidade genial, como o mágico que nos mostra a realidade sob a capa do irreal, o sério escondico sob o jocoso.
Se eu tivesse lido este livro há uns meses atrás, de certeza que tinha feito outras opções muito mais vantajosas. Ou talvez não!
Aqui ficam alguns excertos, para vos aguçar o apetite:
Os mortais têm a meu respeito opiniões díspares, e não ignoro o mal que se ouve dizer da loucura, mesmo entre os loucos. No entanto, sou eu, e eu só, quem alegra os deuses e os homens.
Sou sempre igual a mim própria e nunca uso de disfarce, como os que pretendem passar por sábios e se passeiam como macacos vestidos de púrpura ou asnos cobettos com uma pele de leão.
Instante a instante, a vida seria triste, aborrecida, enfadonha,insípida, insuportável, se a ela não se misturasse o prazer, isto é, a Loucura. Poderia aqui invocar o testemunho de Sófocles, poeta jamais suficientemente louvado, que diz a meu respeito: «Quanto menos prudência e sabedoria maior a felicidade».

Para quê  prudência e  sabedoria, realmente? Atiremo-nos de cabeça para a Loucura e sejamos todos felizes!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

António Souto, «O Tempo das Palavras»


António José Souto Marques nasceu em Angeja, Albergaria-a-Velha em 1961, é Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas e pós-graduado em Teoria e Criação Literária. Entre outras funções, foi professor em França, leccionando neste momento em Lisboa. É autor de Arcanas Carícias, Na Lavra do Dizer e Caprichos, colaborou em várias publicações e publicou em Setembro deste ano O Tempo das Palavras, livro de poemas, em parceria com outro poeta, Armindo S.
A poesia de António Souto reflecte as suas vivências, as suas emoções, os seus pensamentos através de palavras vivas, que têm o poder de nos atrair e de nos contagiar. É uma poesia que nos transmite de uma forma simples e verdadeira os mistérios da vida, a magia do quotidiano, como o poema que vou transcrever aqui, dedicado às suas filhas, de que gostei especialmente:

                                                    
Para a Mariana e Margarida

Nasceu o sol de madrugada só para mim
ia alta a noite e o vento cirandava
grávido de dor e cor em frenesim
que o desejo da espera revelava

pouco a pouco o contorno se acentua
aconchego de capricho que se tem
resplendor de beleza inocente e nua
com rosto e nome agora que convém

saber-vos assim florindo ao ritmo dos dias
cercadas de mimos, requebros, fantasias
cuidando que o mundo é todo vosso

e nestes versos celebrar-vos a vida
a sorte oculta que sabeis comedida
no vingar de um sonho agora nosso.

                                       António Souto, in O Tempo das Palavras



                                                             

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Outubro - Isabel del toro Gomes


(Finalmente, um poema meu. Ganhei coragem!)



Outubro



É Outubro ainda...

Mês das despedidas dos amores de verão


Outubro ameno, cheio deste sol


Que tão meigamente nos aquece, sem agressão


Mais um dia feliz


Em que me sinto feliz aqui sentada


Na nossa sala, sem frio, sem calor


No nosso sofá que tão comodamente


Me ampara o corpo e a alma


Quase adormecidos, sem medo


Sem sofrimento, sem depressão


Mais um dia de Outono amarelecido


Em que me deixo estar aqui quase imóvel


Feliz languidez e lassidão


Em paz à espera de ti meu amor


Do mês de Outubro.




















quarta-feira, 20 de outubro de 2010

D. Carlos I e os «Vencidos da Vida» de F.A. Oliveira Martins

                                                           Estátua de D. Carlos I, em frente à Baía de Cascais

Enquanto o país se entretinha a comemorar o centenário da Implantação da República,   tentando branquear a crise e a penúria com muita música e festanças, os nossos dilectos governantes preparavam pela calada da noite o «prato de fome» que se iria seguir à festa. Enquanto isso, eu lia um livrinho de folhas amarelas, editado pela Parceria António Maria Pereira, de 1942, intitulado D. Carlos I e os «Vencidos da Vida», de F.A. Oliveira Martins, que encontrei por acaso numa prateleira e que custou 10 escudos.
Fiquei logo curiosa por lê-lo, pois pouco ou nada sabia nem do rei D. Carlos I, nem dos «Vencidos». Aprendi um manancial de coisas interessantes, entre as quais que Portugal se encontrava à época do rei-mártir exactamente na mesma situação da que se encontra agora: com o tesouro saqueado, o Estado em bancarrota e a precisar de um «endireita». E também pelas mesmas razões, salvas as devidas distâncias: « A política pessoal de D.Carlos I fazia e a política partidária desfazia» (pág. 107). Só que agora, não se sabe quem faz e quem desfaz, nem o quê...

São tantas as semelhanças entre estas duas épocas históricas, a de D. Carlos I e a nossa (a de D. Sócrates...ou a de D. Cavaco???) que vale a pena ler esta obra. É o nosso retrato, quase, só os nomes são diferentes.
 Alexandre Herculano escrevia : «Dá vontade de morrer». Que diria ele agora?



domingo, 19 de setembro de 2010

Jorge Barbosa

Jorge Barbosa, poeta cabo-verdiano (1902-1971), quase desconhecido entre nós, deu a conhecer a tragédia humana das populações de Cabo-Verde nos seus poemas. Escolhi este poema por ser uma descrição perfeita, cheia de realismo, duma cena da vida quotidiana.

Ilha
Quando o barco alemão vem à ilha carregar sal
há um sobressalto íntimo de contentamento
na gente que fica a ver de terra.

À varanda da antiga casa do largo
olhos curiosos em direcção ao mar
atravessam as lentes baças
de velho binóculo do tempo dos piratas.


Toma certo ar garboso e oficial
com a bandeira nacional à popa
o escaler a remos
ao partir apressado ao vapor
com as autoridades todas do porto
e o empregado da firma carregadora
que leva uma grande pasta sob o braço...

Compram-se a bordo novidades
ouvem-se notícias de longe...
bebe-se
cerveja gelada...

O barco parte depois
e a Povoação resignada
retoma a monotonia habitual...

...à noitinha
à hora tagarela de em seguida ao jantar
os homens reúnem-se na rua principal
comentando as ocorrências do dia.

Vem então à baila aquela passageira de boca pintada
que seguia para o Congo Belga...
E da evocação da mulher estrangeira
ficou um sonho parado
em cada um...
                                (in Ambiente)



segunda-feira, 13 de setembro de 2010

José de Almada Negreiros

                                                                  auto-retrato
José de Almada Negreiros, nasceu em São Tomé em 1893 e faleceu em Lisboa em 1970.

retrato de Fernando Pessoa , por Almada Negreiros, 1954

Universalmente conhecido pelo retrato de Fernando Pessoa, como pintor e artista plástico, Almada Negreiros também foi poeta, romancista, ensaísta, crítico de arte, conferencista, dramaturgo, enfim, uma das mais notáveis figuras da cultura portuguesa. Um génio, na opinião de muitos.

                                                       Vitral da Igreja de Fátima, Lisboa

Na Igreja de Nossa Senhora de Fárima, em Lisboa, obra do Arquitecto Pardal Monteiro, que foi inaugurada a 13 de Outubro de 1938, são da sua autoria o portão do Baptistério, os frescos da cúpula da ábside e os magníficos vitrais, que são a parte mais visível e conhecida dos trabalhos de Almada Negreiros nesta Igreja.


A obra mais importante da sua derradeira fase criativa foi um grande painel em pedra gravada, destinado ao átrio da sede da Fundação Calouste Gulbenkian. Trata-se de Começar (1968-1969), uma obra fascinante, de complexa e mística concepção.


                         A.Negreiros a trabalhar nos painéis da Gare Marítima de Alcântara


                                                      Gare Marítima de Alcântara


 gravuras incisas na entrada da Faculdade de Letras de Lisboa


A sua poesia não ocupa, no conhecimento do público, o lugar a que tem direito. Aqui fica, então, o poema Rondel do Alentejo, de Almada Negreiros.
                                    Almada Negreiros com a mulher e pintora, Sarah Afonso

                                  Rondel do Alentejo
Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.

Meia-Noite
do Segredo
no penedo
duma noite
de luar.

Olhos caros
de Morgada
enfeitada
com preparos
de luar.

Rompem fogo
pandeiretas
morenitas,
bailam tetas
e bonitas,
bailam chitas
e jaquetas,
são as fitas
desafogo
de luar.

Voa o xaile
andorinha
pelo baile,
e a vida
doentinha
e a ermida
ao luar.

Laçarote
escarlate
de cocote
alegria
de Maria
la-ri-rate
em folia
de luar.

Giram pés
giram passos
girassóis
e os bonés,
e os braços
destes dois
giram laços
ao luar.

O colete
desta Virgem
endoidece
como o S
do foguete
em vertigem
de luar.

Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete de luar.
                                             in «Contemporânea»


                                              Com os filhos, na Quinta de Bicesse


terça-feira, 7 de setembro de 2010

Irene Lisboa


Mais um poema de Irene Lisboa:

                                    Jeito de escrever
Não sei que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.
Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei que diga, não sei que pense.
Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?

Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!
Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito.
                                                      (excerto dum poema inédito, in «Líricas Portuguesas de Jorge de Sena)