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quarta-feira, 9 de março de 2011

«Cartas de Lisboa» de Carlos Malheiro Dias



Em 1904, Carlos Malheiro Dias, «o nosso maior romancista  depois de Eça de Queirós» segundo João Gaspar Simões, escrevia assim sobre Lisboa e as lisboetas (elas e não eles), em tempos de Quaresma:
A Lisboa, que mais pareceu divertir-se durante o Carnaval, é a que mais simula rezar na Quaresma.
Não é conveniente pôr em dúvida a devoção da lisboeta. Mas a Quaresma oferece-lhe ainda um óptimo pretexto para sair de casa. E a lisboeta não tem por costume desperdiçá-los. Dobrado o dominó, com que intrigou em S.Carlos, a mulher de Lisboa examina escrupulosamente os seus vestidos pretos.
A moda, tanto como a liturgia, acrescentou às quatro estações do ano ainda mais esta. Enquanto dura a Quaresma, a lisboeta, que é terrivelmente preconceituosa, leva para a rua, dentro do regalo ou do indispensável, o seu livro de missa. E leva-o para a modista, para as lojas, para casa das amigas, para a Avenida ou para o Campo Grande. É duvidoso que se sirva dele. mas não o abandona. E, se não tem um carretel de linha ou um papel de agulhas para comprar - e isto basta para a ocupar durante uma tarde inteira - então a lisboeta, ao passar pelos Mártires ou pelo Loreto, sobe as escadas, despe a sua luva de suécia, vai rezar uma devoção em frente à capela do Santíssimo.
Mas hoje as igrejas não são, como há cem anos, verdadeiras escolas de socialibilidade, autênticos salões mundanos...Por isso também as igrejas apenas fazem, durante a Quaresma, um simulacro de concorrência às confeitarias. Raro é que a devota, para se restabelecer da comoção religiosa, não vá comer um bolo ao Ferrari, ao Marques ou ao Rendez-vous des gourmets.
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As actrizes adquirem com a prática a ciência de pisar o palco. A lisboeta possui a ciência nativa e subtil de pisar a rua.
Não há carruagens que a assustem, ajuntamentos que a embaracem. Alegre, com a cabecita no ar, os olhos vigilantes, ela vê tudo, cumprimenta todos os conhecidos, examina todas as vitrinas, lê todos os anúncios.
A rua de Lisboa, ninguém a conhece melhor do que ela. Sabe do conteúdo de todas as lojas como das gavetas da sua cómoda. Discute os preços, compara-os...
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Toda a empresa que desdenhe captar o seu interesse, arrisca-se a um desastre. Qualquer director de teatro, antes de aceitar um original, procura saber se agradará à mulher. O editor nunca esquece de perguntar ao homem de letras se o seu livro pode ser lido pela mulher.
                                in «Ciclorama Crítico de um Tempo»

Opiniões à parte, tanto sobre o mérito de Carlos Malheiro Dias, que me parece na realidade ser um grande escritor, como sobre o mérito das lisboetas dos inícios do século XX, este texto é um importante estudo sociológico dos usos e costumes dos tempos em que certas senhoras tinham todo o tempo do mundo para passear pela cidade, ir às compras, passar pelas igrejas, sem olhar o relógio e sem correr dum lado para o outro (agora só muito poucas se poderão dar a este luxo). E, pelo que parece, a importância da mulher nesses gloriosos tempos dos nossos avós, era bem maior do que nos tempos actuais, em certpos aspectos. Muito curioso!