segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

«POema do Menino Jesus» de Alberto Caeiro






presépio em frente da Igreja de Moscavide, Dezembro de 2017

Poema do Menino Jesus


Num meio-dia de fim de primavera
Eu tive um sonho, como uma fotografia.
Eu vi Jesus Cristo descer à terra.
Ele veio pela encosta de um monte,
tornado outra vez menino,
a correr e a rolar-se pela erva
e a arrancar flores para as deitar fora
e rir de modo a ouvir-se de longe.

Ele tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
de segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
com flores e árvores e pedras.
No céu, Ele tinha que estar sempre sério
e de vez em quando de se tornar outra vez homem
e subir para a cruz.
Estar sempre a morrer
com uma coroa toda à roda de espinhos
e os pés espetados por um prego com cabeça,
e até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas,
um velho chamado José, que era carpinteiro.
Não era pai dele;
o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo.
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala em que
ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
e nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!





Um dia que Deus estava a dormir
e o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
e deixou-o pregado na cruz que há no céu
e serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje Ele vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso natural. 
Ele limpa o nariz no braço direito,
Ele chapinha as poças de água,
Ele colhe as flores e gosta delas e esquece-as. 
Atira pedras aos burros,
rouba fruta dos pomares
e foge a chorar e a gritar dos cães.
E porque sabe que elas não gostam
e que toda a gente acha graça,
Ele corre atrás das raparigas
que vão em ranchos pelas estradas
com aquelas bilhas nàs cabeças
e levanta-lhes as saias.

A mim [...] ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem na mão
e olha devagar para elas.




Depois cansado, o menino Jesus adormece nos meus braços.
Levo-o ao colo para dentro de casa
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

Damo-nos tão bem um com o outro
na companhia de tudo,
que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos, os dois com um acordo íntimo
como a mão direita e a esquerda.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens.
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ele ri dos reis e dos que não são reis,
e tem pena de ouvir falar das guerras,
dos comércios, da violência e dos navios
que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que a tudo isso falta àquela verdade
que uma flor tem ao florescer
e que anda com a luz do sol
a variar os montes, vales,
fazem doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
e como seguindo um ritual muito limpo
e todo materno até ele estar nu.




Ele adormece dentro da minha alma
e às vezes acorda de noite
e brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
põe uns em cima dos outros
e bate as palmas sozinho
sorrindo para o meu sono.
     
Quando eu morrer, filhinho,
seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
e leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
e deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba,
não há de ser ela mais verdadeira
que tudo quanto que os filósofos pensam
e tudo quanto as religiões ensinam!


                                                      Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa)
                                                      VOZ: António Abujamra




sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Os murais de Odeith

Murais de Odeith à saída do metro da Amadora (ou Falagueira?)

Arte urbana.
Quatro murais que vale a pena ver com atenção, in loco.
Basta ir de metro até à Amadora (ou Falagueira?).
Vai ser a minha próxima viagem de metro, de certeza!




Zeca Afonso


Amália Rodrigues


Fernando Pessoa 


Carlos Paredes

terça-feira, 28 de novembro de 2017

«Lampo, chien voyageur» de Elvio Barlettani


Lampo, chien voyageur

Tinha este livro em casa desde 1963, mas nunca o tinha lido. Coisas do acaso.
Acho que nem o conhecia, o que era uma pena. Até chorei quando  o li. 
Vale a pena ir até uma biblioteca qualquer, para o requisitar e ler em casa. Principalmente para os que gostam de animais.

Lampo é a história verdadeira de um cão-viajante que se torna no cão mais célebre de Itália.


Um livro fantástico, uma história maravilhosa sobre amizade entre pessoas e animais, em que Lampo ( o cãozinho que gosta de viajar de comboio) vai ter por acaso a uma estação de comboio e se transforma no maior amigo do chefe da estação, funcionários, passageiros, etc. A vida dele foi atribulada, mas no final até teve direito a uma estátua.



domingo, 26 de novembro de 2017



Só para desejar a todos os amigos um bom domingo, o último de Novembro 2017, fui «rebuscar» um poema meu bem antigo, escrito em 1995, imaginem! Até a minha memória está a precisar de relembrar estas palavras e versos escritos por mim há já tanto tempo (há 22 anos, Deus o tempo passa!).

No passeio de domingo


Toda a minha gente

Anda no seu passeio de domingo

Uns para baixo, outros para cima

Uns para cá, outros para lá

Uns de carro, outros a pé

Mas todos desejam e imaginam

Um belo passeio de domingo.

Uns falam e riem alto

Outros calam-se

E escondem o sorriso

Mas todos pensam

"Que belo passeio de domingo!"

Toda a semana a trabalhar

A fugir da dor e do cansaço

Sem tempo para nada

A correr, a correr

Sem tempo para pensar.

Mas no domingo

Lá iremos passear.

                                                               24 Set./95


quarta-feira, 27 de setembro de 2017

«O Vendedor de Passados» de José Eduardo Agualusa



O Vendedor de Passados


O Vendedor de Passados é um romance de José Eduardo Agualusa.
Este livro conta a história de um vendedor de ilusões. O personagem principal é Felix Ventura, um albino que tem a curiosa profissão de preparar e vender árvores genealógicas.

Apresenta-se-nos deste modo um enredo cheio de curiosidades mirabolantes, que têm o condão mágico de prender constantemente o leitor. 
Os clientes de Félix Ventura são prósperos empresários, políticos, generais, isto é, a burguesia angolana, têm o seu futuro assegurado mas, porém, falta-lhes um bom e representativo passado.





Até que um dia lhe aparece em casa um estrangeiro que precisa de uma nova identidade, uma identidade angolana.

Este é o «sonho» de muito boa (ou má) gente, certamente, e só um escritor com muita criatividade e sabedoria consegue urdir uma história como esta, tanto pela sua originalidade (apresentando uma osga - esse pobre bicho de que tanta gente tem nojo - como narrador), como pela sua perícia em fazer reflectir sobre a realidade humana angolana (e universal). 

O Vendedor de Passados
de José Eduardo Agualusa é a partir de agora  recomendado para o Ensino Secundário como sugestão de leitura pelo Plano Nacional de Leitura.

Um ótimo livro que os alunos do Ensino Secundário irão ler com agrado certamente, devido à sua escrita satírica e divertida.



Lembro-me de um quintal estreito, de um poço, de uma tartaruga dormindo na lama.
.........................................................................................................
A minha mãe estava sempre ao meu lado, uma mulher frágil e feroz, ensinando-me a recear o mundo e os seus perigos inumeráveis.
«A realidade é dolorosa e imperfeita», dizia-me, «é essa a sua natureza e por isso a distinguimos dos sonhos. Quando algo nos parece muito belo pensamos que só pode ser um sonho e então beliscamo-nos para termos a certeza de que não estamos a sonhar - se doer é porque não estamos a sonhar. A realidade fere, mesmo quando, por instantes, nos parece um sonho. Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de tudo o que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolhe os livros.»


 Entre a vida e os livros in O Vendedor de passados de José Eduardo Agualusa


domingo, 3 de setembro de 2017

Um mundo plastificado


quadro de Mily Possoz, s/título
Um mundo plastificado

Talvez um dos maiores males da nossa civilização se deva ao uso excessivo do plástico, que não só entope os oceanos e os estômagos dos peixes, como também é tido por muitos como um  material desadequado para fabricar os brinquedos das crianças. 





Roland Barthes já o afirmava nos anos 50 no seu livro  Mythologies, capítulo Jouets. Os brinquedos construtivos e de madeira são muito mais criativos do que os de plástico. E é constrangedor o seu progressivo desaparecimento.


A matéria plástica apaga o prazer, a doçura, a humanidade do toque que possui a madeira. Fazem brinquedos que morrem depressa e deixam de ter qualquer préstimo para a criança.

A madeira, por seu turno, é uma substância familiar e poética, que põe a criança em contacto continuado com a árvore, a mesa, o chão...
Com a madeira fazem-se objectos essenciais, que duram uma vida inteira, que vivem com a criança ao longo da vida, modificando pouco a pouco a  relação do objecto e da mão.
De facto: o tradicional cavalinho de madeira de baloiçar pode durar uma vida, passar de pais para filhos, ou de uma criança para outra. 

Neste momento, sinto pena de ter dado o dos meus filhos, mas com a falta de espaço um dia lá foi para outro menino, que não tinha possibilidades de fazer cavalgadas.

Felizmente, muitos dos nossos artesãos ainda se dedicam a fazer brinquedos de madeira, que são lindíssimos e muito úteis. Vendem-se em muitas feiras e nalgumas lojas.
Assim os pais os comprem e os ofereçam aos seus filhos, para bem de todos e para que o nosso mundo não se transforme num monte de lixo de plástico.


quarta-feira, 30 de agosto de 2017

«Sesimbra» de Isabel del Toro Gomes




Sesimbra





Recordo o mar de Sesimbra

Esse mar que nos chama

E nos cativa, lá do fundo

E que é sempre da cor do céu









Esse mar em que todas as coisas

Se confundem e se misturam

Algas, rochas, lapas

Peixes, conchas, pedras








Ali, na linha do horizonte

Azul é o céu

Azul é o mar

Azul é a esperança







Ouço o teu apelo amigo

De dia suave e calmo

De noite rouco e turbulento



  

E respondo então assim

Mar grande e profundo

Estou aqui!

Deixa-me mergulhar em ti.



quarta-feira, 16 de agosto de 2017

«O Piano» de Isabel del Toro Gomes



quadro de Milly Possoz

O piano

Ao longe, num palco qualquer

Alguém o piano tocava

E eu ouvia

Aqui à espera sentada.



A concertista

Fazia exercícios rápidos

E os seus dedos mágicos

Eram como crianças endiabradas

Aos saltos.



O piano cantava

A música rodopiava

O mundo como que parava

E eu aqui sentada

Ouvia e lia poesia.

                                                         quadro de Milly Possoz


sábado, 12 de agosto de 2017

Um casal-estátua em Santiago de Compostela


Santiago de Compostela é um local de culto religioso e de turismo com muita gente pelas ruas, normalmente. Mas nunca imaginei que houvesse tanta, em Julho de 2017.
Não obstante a temperatura baixa e a ausência de sol, os corações estavam quentes e sequiosos de tempos mais afortunados e com menos crise.
Duvido que os deuses ou os santos possam ajudar neste aspecto, mas a Fé nalguma coisa sempre ajuda.
E a Galiza proporciona a todos um enlevo na alma de verde do arvoredo, de azul do céu, das rias e do mar, e de dourado das estátuas e adornos das igrejas e templos.
Nas ruas comprava-se e vendia-se de tudo numa enorme Feira Medieval, com exposição de aves de falcoaria, com artistas de rua, muito comércio, enfim. Como é costume, à boa maneira castelhana.


No meio de todo esse azáfama, um casal-estátua chamou-me a atenção. Simpáticos, chamavam-nos para tirarmos uma foto com eles. Ela está notoriamente grávida, mesmo assim consegue manter-se naquela posição imóvel durante horas. No fim do retrato, ele ofereceu-me uma bela concha, símbolo do peregrino de Compostela. A vida vai ser difícil para cuidar de um filho, espero que a futura mãe possa ficar o tempo necessário com o bébé em casa, e que tudo lhes corra o melhor possível. 


A felicidade é uma irresponsabilidade cada vez mais difícil, mas vai-se tentando e construindo a cada dia que passa. Com a ajuda de São Tiago de Compostela.


quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Reabertura do Palácio Galveias em 2017



Depois de obras de requalificação, que demoraram muito mais tempo do que previsto (tinha que ser!), fui finalmente em Agosto visitá-lo e requisitar livros.


Eis as minhas primeiras impressões:

- por dentro, o Palácio está rejuvenescido e maravilhoso (como já era);



- existem mais salas de leitura, foram abertas várias no 1º piso, com livros expostos em estantes donde podem ser retirados e colocados pelo leitor;



- como não podia deixar de ser, placa à porta com o nome do Presidente da Câmara e data da inauguração;



- no jardim parece que houve uma daquelas revoluções em que não fica pedra sobre pedra, com saldo infelizmente negativo, na minha opinião: jardim descaracterizado, uma árvore enorme e arbustos selvaticamente cortados, para servirem de bancos e mesas. Os pavões (que atraíam muitos pais com as suas crianças e que podíamos admirar no seu quotidiano de criação e nos seus gritos de chamamento e que tornavam aquele recanto num pequeno paraíso no meio da cidade) não voltaram depois do encerramento para obras. Lamentável!
-  o Quiosque está ainda fechado e sem sombra, pois a árvore mesmo ao lado foi cortada.


Resultado: ao contrário do que era esperado no mês de Agosto, não havia quase ninguém no jardim, onde até se podia estar abrigado naquele dia de vento.






segunda-feira, 7 de agosto de 2017

«Luz ao fundo do túnel» de Isabel del Toro Gomes



Luz ao fundo do túnel



Já ninguém olha para o céu

Já ninguém admira a forma das núvens

Nem o brilho das estrelas

Nem a lua banhando-se no mar...


Nem o sol quando nasce e se põe

Nem as manhãs frescas e claras

Nem a água a correr nos rios

Nem os gritos do vento

Nem as montanhas altivas

Nem as rochas, nem as pedras...


Para quê olhar o céu?

Quem quer saber de constelações?

Já só interessam os milhões!

Quem quer saber das coisas e dos outros?

Já só interessa viver aos poucos
Sobreviver à angústia de cada dia.


Todo o dia é uma noite

Em que se percorre um imenso túnel

Sem encontrar  uma luz ao fundo.

                                                                            3 Out./95

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Henrique Abranches


Henrique Abranches nasceu em Lisboa em 1932 e embarcou para Angola com 15 anos de idade. Entre 1956 e 1959, iniciou a sua actividade intelectual, literária, na pintura e nos estudos etnográficos, em Sá da Bandeira.
Mais tarde, já em Luanda, escreve principalmente poesia, e textos de etnologia.
Preso pela PIDE, escreve na prisão o esboço do seu primeiro romance A Konkhava de Feti, que consegue fazer sair do país.
É enviado para Lisboa com residência fixa, onde continua o seu trabalho político fazendo palestras e colaborando com a Casa dos Estudantes do Império
É membro fundador da União dos Escritores Angolanos e da UNAP (União Nacional dos Artistas Plásticos), de que foi presidente.
As suas obras A Konkhava de Feti e O Clã de Novembrino (em três volumes) foram galardoadas com o Prémio Nacional de Literatura.
Faleceu na África do Sul em 2006.
Do seu livro de poemas Cântico Barroco, um dos poemas de que mais gostei foi  Ode Urbana.


ODE URBANA
 
Hoje não vou ter contigo, minha querida,
ainda que a meiguice me domine
e exerça em mim uma força magnética
que apaga as tuas palavras fúteis
e te reduz a um afago sublime.
Não vou ter contigo no Musseque Prenda.
Não quero ouvir falar de Lenine
nem da formidável Revolução Soviética
que aprendeste nos livros,
minha querida.
Nem da bravura singular de Hoji ya Henda,
a quem nunca deste um beijo de ternura
apesar da ternura que há na tua vida.
Nem no Quatro de Fevereiro estilizado
e conservado dentro de uma urna
- fogo de brasas que não arde,
porque nunca foi espevitado.
 
Vou por aí,
sob o Sol da tarde.
Vou andar sem ti, pela extensa avenida
perscrutando o rosto soturno
daqueles que mal olham por seu turno
como se o drama deles fosse a minha vida.
Vou estar em toda a parte, de muitas maneiras,
em busca do teu modo impertinente
de me refazer com graça infantil.
Vou andar à sorte das caras prazenteiras
que cruzarão comigo demoradamente,
com a alegria das crianças no recreio.
Vou piscar o olho a toda a gente
e fazer um convite à quitandeira.
que me vender o repolho mais subtil,
que me lembre a calote do teu seio.
Vou recordar a Maria da Fonte
sobre o pedestal – enorme e mamalhuda –
com a beleza magnífica e felpuda
da grande migália do Brasil.
- A sua imensa mão calcária,
que empunhava uma espada da Dâmocles
como um falo de bronze antigo,
jaz agora partida e solitária
num canto do quintal do meu amigo.
 
Hoje não vou ter contigo,
minha querida do Musseque Prenda.
E todavia,
vou procurar-te com arte em toda a parte,
na alegria dum rosto aventureiro
entre os rostos que vão rua fora.
Vou pensar em ti, na doçura de mel
das ondas do teu corpo marinheiro,
sem escutar o teu frasear de menina,
junto aos ângulos da muralha esmagadora
da velha Fortaleza de S. Miguel.
 
Vou recuperar-te, terna e franzina
nas velhas paredes, ou em cada esquina
caprichosamente envelhecida
do Palácio de Don’Ana Joaquina.
Vou entrar lá dentro, mudo e quieto.
Andarei pelo salão que dorme,
onde as paredes são um livro aberto.
Andarei pelo pátio, que a verdura cobre
dum vestido selvático e informe,
onde gemeram escravos de destino incerto,
onde germinaram amores de poeta.
Vou procurar a sacada nobre
onde eu seja Romeu e tu Julieta.
 
E ao cair da noite proletária
sobre as ruas agora desertas,
procurar-te-ei no voo dos insectos
que rodopiam em dança funerária
nas luzes sombrias da Avenida Deolinda.
Talvez te encontre de asas abertas,
ventre chamuscado, cheirando ainda
teus voluptuosos perfumes de Ambaka
que o meu ter-te sempre eterniza.
 
Voltarei à cidade baixa e quente
com sabor de Kisaka e odores de muamba,
em busca da cilada traiçoeira,
da facada cruel e precisa,
que seja diferente
das tuas vagas carícias de brisa.
Andarei pelas ruas da Mutamba
olhando sobranceiramente
- com a segurança de sua santidade –
mulheres que se dizem retornadas
dum passado de que foram sonegadas.
Na penumbra que escamoteia a verdade,
camuflando um perigoso companheiro,
elas aguardam os homens de dinheiro
escrevendo o dia-a-dia na cidade.
 
E tudo isso eu farei por ti, amor,
à procura do teu sabor na vida.
E todavia,
se ao longo dessa busca não te vir florida
neste caminho de sangue e de alegria,
se te souber esquecida no Musseque Prenda.
 
Não venhas ter comigo, minha querida!
Não venhas ofender a noite estupenda
de violência, de dor, de sórdidos amores,
sob um lampadário… à porta duma venda
algures
na Rua dos Mercadores…

quinta-feira, 27 de julho de 2017

«Os vagabundos da verdade» de Jack Kerouac


As trilhas são assim: ora flutuamos num paraíso shakespeariano e até esperamos ver, de um momento para o outro, ninfas do mar e faunas, ora, subitamente, nos debatemos, debaixo do sol escaldante, num inferno de poeira, urtigas e silvas...Tal como a vida.


-O mau Karma produz automaticamente bom Karma -Observou Japhy. -Não praguejes tanto e avança, pois em breve estaremos muito bem sentados em terreno plano.

in Os Vagabundos da Verdade, de Jack Kerouac, Editorial Minerva



quarta-feira, 26 de julho de 2017

Escola Comercial Patrício Prazeres



Escola Comercial Patrício Prazeres





Esta foi mais uma das escolas que frequentei que, embora não fosse por vontade própria que ali estava, nem estivesse vocacionada para os estudos que proporcionava, me deixou muitas e boas recordações.

Com apenas 13 anos, eu era de pequena estatura com essa idade, lá subia eu as escadinhas do Castelo todos os dias, para entrar às oito horas para a secção da Costa do Castelo, que funcionava para os alunos do 1º ano do curso complementar, no antigo edifício da Escola Primária nº 10. No inverno ainda era noite fechada, os degraus eram muitos, mas as minhas curtas pernas subiam ligeiras por ali acima. Devia de encontrar outras alunas no caminho, disso não me lembro, os perigos por ali já não rondavam, àquela hora matinal. Os que se tinham deitado tarde, vagueando pela cidade, estavam agora a dormir, as casas mal começavam a despertar nos seus recantos com sardinheiras.




Mais tarde, aos 14 anos, já no 2º ano do Curso Complementar de Comércio, fui então para a sede da Escola Patrício Prazeres, no Alto de São João (sabia vagamente que existia lá um cemitério, mas era coisa em que não pensava nem me preocupava).



O caminho era mais arrojado ainda, mas eu já mais experimentada e cheia de determinação.

Ia de autocarro dos Olivais Sul para a Praça do Chile, depois a pé pela Morais Soares (ou de eléctrico, mas preferia a pé para poupar o dinheiro e encontrar outras colegas pelo caminho). Chegada ao Alto de S. João, descia uma grande calçada com casebres de gente muito pobre, um bairro de lata, como se dizia então, que esse sim, me metia um pouco de medo.

Nunca aconteceu nada, salvo um dia em que uma petiza que nem 2 anos devia de ter, me atirou um alguidar de água para cima, e a água parecia ter qualquer coisa adocicado. Deve ter sido encomenda de algum irmão mais velho. Fiquei tão danada e estupefacta, que não consegui dizer nada.

Chegada à escola, lá me limpei o melhor possível, e nunca esqueci este episódio nem a figurinha da minúscula criança que me deitou uma mistela qualquer para cima!




Muitas outras pequenas aventuras me aconteceram nesta escola, onde encontrei professores que jamais esqueci, ótimos professores mesmo. Fiquei na Patrício Prazeres até aos 16 anos.

Também me lembro vagamente de alguns dos meus colegas, pena termos perdido o contacto, como acontece muitas vezes.
Desses tempos restou uma foto, que tinha esquecido e que encontrei há dias. Foi bom tê-la encontrado, nostalgias à parte.



Estes eram os meus colegas do curso complementar da Escola Patrício Prazeres, com a professora à esquerda (ao lado dumas crianças que estavam na praia, filhas de pescadores pela certa), em Sines, numa visita de estudo que fizemos, em março de 1971. Eu tinha 16 anos (ao centro, sentada no barco).

Enquanto que nos liceus andavam meninas para um lado e rapazes para o outro, e os professores eram, geralmente, pessoas distantes dos alunos, nas tais escolas «comerciais» ensinavam-se coisas como dactilografia, caligrafia, contabilidade, economia doméstica, mercadorias (esquisito!), francês e inglês comercial, matemática, química...E rapazes e raparigas viviam em comum no seu dia-a-dia escolar, aprendendo para a vida, sem agressões nem barreiras. Isto sim, era verdadeira integração de todos.

Era tudo bons rapazes e boas «moças»!